Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A noite das ilusões

" As ilusões " de Diego Rivera







Satisfied Mind


The Byrds

Johnny Cash

Jeff Buckley

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

domingo, 27 de dezembro de 2009

Portugal presente

« Descemos à areia. Com esta luz oblíqua, parece uma grande laje. As rochas estão cor de mel, o mar está manso, um homem desce de galochas, com um balde, a igreja toca as quatro. É Nossa Senhora dos Navegantes.
Pisamos carcaças de mexilhões, milhares, para chegar ao pontão. Ruben fala dos naufrágios que têm matado gente, até na rua dele, até na família. Nisso, 2009 foi piedoso.
"Antigamente, Caxinas era um povo unido, um pouco isolado do mundo, mas agora já não."Para o bem e para mal? "Sim, é verdade, tem sido fragilizada tanto pelo desemprego como pela vida do mar." Ruben assenta os ténis nos limos do pontão e olha firme para a câmara fotográfica, camisa branca impecavelmente passada, cachecol de lã cinzenta, computador portátil debaixo do braço. Foi assim que chegou junto a nós este oitavo filho de um pescador de Caxinas.
"Tenho cinco irmãos e duas irmãs, mas hoje em dia as pessoas optam por ter um filho, dois no máximo."
A areia está cheia de patas de gaivota no sentido da Póvoa de Varzim. "Caxinas tem uma coisa boa, que é estar entre duas cidades grandes que se estão a desenvolver." Mas basta ficarmos voltados para o mar e é como se não houvesse cidade. Não se houve nada.
Voltando à marginal, os velhos continuam a jogar no seu abrigo de vidro. Olhando melhor também há vários homens jovens ou de meia-idade. Desempregados, numa segunda-feira à tarde.»



Excerto da reportagem " 2009 O pior ano da vida deles ", de Alexandra Lucas Coelho, Pública, 27/12/2009

O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro





Ruy Belo

Tiny Children













J. Laurent









"J. Laurent e Portugal " exposição no CPF. Ver aqui no blogue " Grand Monde " de Angela Camila Castelo-Branco.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Time after time

Noites Brancas

« Há qualquer coisa de indizivelmente enternecedor na nossa natureza petersburguense quando ela, à chegada da Primavera, revela de um jacto toda a sua potência, todas as forças que o céu lhe doou, se cobre de penugem, se desprende, se esmalta de flores multicoloridas... Lembra-me aquela rapariga definhada e enfermiça para quem olhamos umas vezes com comiseração, outras com uma espécie de amor compassivo, mas a quem, o mais das vezes, não prestamos atenção, e que de repente, por um único instante, se torna divina, indubitavelmente bela, e então nós, espantados, maravilhados, perguntamo-nos: que força fez que lhe brilhassem com aquele fogo os olhos tristes e cansados? O que fez subir o sangue àquelas faces pálidas e chupadas? O que lhe vestiu de paixão os enternurados traços do rosto? Por que se lhe levanta tanto aquele peito? O que chamou a força, a vida, a beleza ao rosto da pobre rapariga, o que lho fez brilhar com aquele sorriso, animar-se com aquele riso radiante, resplandecente? Olhamos em volta, procuramos alguém, adivinhamos... Mas o instante passa e, o mais certo, é vermos-lhe o mesmo rosto pálido, a mesma submissão e timidez dos gestos, e até um arrependimento, até vestígios de desgosto, de mortífera náusea pela paixão momentânea... E temos pena que tão depressa, tão irremediavelmente tenha murchado a beleza de um instante, a beleza que, tão enganadora e inútil, cintilou à nossa frente - temos pena porque nem sequer tivemos tempo de nos apaixonarmos dela...»






1 ) Excerto de " Noites Brancas ", de Fiódor Dostoiévski, Trd. Nina Guerra e Filipe Guerra, Ed. BI

2 ) Excerto do filme de Luchino Visconti, baseado na novela e realizado em 1957.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Canção do dia(23): " Bicycle Race " - Queen (1978)

Onde está Deus, mesmo que não exista?

" Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer... Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de não sei que futuro...
Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um leito pequeno onde acabar por dormir, entre contos que embalam, mal ouvidos, com uma atenção que se torna morna, de perigos grandes - penetravam em jovens cabelos louros como o trigo... E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e sonolento da realidade última das Coisas...
Um colo ou um berço ou um braço quente em torno ao meu pescoço...
Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me chorar... O ruído de lume na lareira... Um calor no inverno... Um extravio morno da minha consciência... E depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como a lua rodando entre estrelas... "



Excerto de " Livro do Desassossego " de Fernando Pessoa, Ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim

Excesso de ruído?


Ilustração de Zichy Mihaly

«Al final todo se reduce a una cuestión de decibelios: a 47 llegaron los gemidos de los coitos de Steve y Caroline Cartwright. Un registro que los ha convertido en el hazmerreír de los tabloides y en la peor pesadilla de sus vecinos, que los han denunciado por quebrantar el silencio de su urbanización.» continuar a ler aqui.

Eduardo Suaréz, El Mundo, 15/12/2009

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sublimes músicas religiosas


Excerto de " A paixão segundo S. Mateus ", de J.S.Bach, orquestra dirigida por Gustav Leonnardt

"Tekbir/Taleal Bedru Aleyna " - Ercan Irmak

Minaretes



« El gobierno de Erdogan critica a Suiza cuando en Turquía es casi imposible construir un templo que no sea mezquita. » continuar a ler aqui.

Fran Martínez, El Mundo, 06/12/2009



















Minaretes, Índia



«O voto contra os minaretes na Suíça é só um sinal. Dos palcos políticos à Internet, por toda a Europa emergem manifestações de medo ou desconfiança em relação aos muçulmanos. Há indicações de que a discriminação está a aumentar, dizem especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. » continuar a ler aqui.

Alexandra Lucas Coelho, Público, 06/12/2009

A memória triste da linha do Sabor*

* Fotorreportagem de Paulo Pimenta, para o Público, ver aqui.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Retratos de Pierre Gonnord









Retrato de mulher transmontana, por Pierre Gonnord, ler aqui entrevista e mais fotografias, publicadas no El País.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Canção do dia(22) : " Papillon " - Editors(2009)

Cenas da vida conjugal(2)

« Obcecado por uma ideia fixa, à dúvida que já sentia sobre aquele casamento que em tempos lhe agradara, acrescentou amadurecidos instintos de cupidez. Raciocinando assim, ruminou solitário e sem descanso as mesmas reflexões, acabou por sabotar o seu próprio espírito e atribuir um valor enorme a factos que não tinham importância.»

Excerto de " O castelo do homem ancorado ", de J.K. Huysmans, Trd. Aníbal Fernandes, Ed.Livro B, 1985

Cenas da vida conjugal(1)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

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" El cant des ocells " por La Capela Reial, dirigida por Jordi Savall

domingo, 29 de novembro de 2009

Canção do dia(21): " Natação obrigatória " - Banda do Casaco(1980)

Viemos do fundapique
passámos no tudasaque
não há mal que mal nos fique
nem há cu que não dê traque
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo

Andámos no malsalgado
brigámos no daceleste
e o escorbuto mal curado
com tratamento indigesto
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo


Natação obrigatória
na introdução à instrução primária
natação obrigatória
para a salvação é condição necessária
não há cu que não dê traque
não há cu que não dê traque
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo

Pusemos a cachimónia
em papas de sarrabulho
e quando as noites são de insónia
damos voltas ao entulho
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo

Aprendizes da política
só na tática do "empocha"
vem a tempestade mítica
e s cabeça dá na rocha
mal a gente vem ao mundo
logo a gente vai ao fundo



Trás-os-Montes








«Trás-os-Montes, o primeiro filme que assinou com António Reis, tornou-se uma referência para toda uma geração, e 33 anos depois da estreia continua a ser a súmula de algo português. "Para um povo e para um país à procura de si próprios", escreveu João Bénard da Costa, "é uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direcção".»

Alexandra Lucas Coelho, Pública de 29/11/2009

Trás-os-Montes



«Por que vive aqui?

São razões pessoais, privadas. Não é por gosto. Senti-me no dever de vir há anos, estou arrependida, gastei dinheiro a recompor a casa e outras coisas, mas não foi uma escolha, foi por obrigação, pronto. Gostava de ter ido para Bragança, e a segunda escolha era dar a volta a vários pontos do mundo, porque adoro viajar. Tanto posso estar sozinha muito tempo, e estive aqui cinco anos sozinha, como posso andar a correr pelo mundo. Gosto de extremos.» continuar a ler aqui.

Entrevista de Alexandra Lucas Coelho a Margarida Cordeiro, fotografias de Nelson Garrido, Pública de 29/11/2009

sábado, 28 de novembro de 2009

Fé em Deus

«"As pessoas dizem para ter fé em Deus que tudo se há-de resolver", disse, revelando "sentir-se abandonada pelo Estado português" que, acrescentou, "devia zelar pelos nossos interesses".» ler aqui no Jornal de Notícias.

Isabel Freitas, cliente do BPN, em greve de fome junto ao balcão da Boavista-Porto

terça-feira, 24 de novembro de 2009

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" La cuestión del lenguaje " - León Ferrari

Canção do dia(19): " A day at the riding school " - The Legendary Tiger Man (Paulo Furtado) com Maria de Medeiros(2009)

Quando a esmola é grande o pobre desconfia

«Uma grande parte dos clientes que esta manhã está concentrado no balcão do BPN é proveniente de Fafe, e chegou a ouvir-se, por várias vezes, a intenção de enveredar pela proverbial justiça daquele município: “Ainda vamos reaver o dinheiro, nem que seja à paulada”, dizia uma mulher, irada. José Lemos, a seu lado, pedia calma, e contava: “Fizemos um depósito a prazo, de 365 dias, com 5,5 por cento de juros. Venceu a 12 de Setembro. Não pagaram nada. Nem juro nem capital. Disseram-nos que tínhamos de esperar que ficasse resolvida uma situação na Marina Park, que nem sabemos o que é”. “Deve ser uma casa de alterne”, ripostava, de novo a mulher. Que não, diz José Lemos: “pelos vistos é uma marina em Albufeira, mas ninguém nos disse que o dinheiro ia ali ser aplicado”, terminou.» ler aqui na íntegra.


Luísa Pinto, Público, 24/11/2009



Impostos(1)

Impostos(2)

«Crescer impostos é uma afronta aos portugueses (mesmo que pareça inevitável) e ainda mais desconsiderante para cada um dos habitantes deste país é ouvir o Governo dizer que não vai subir impostos - quando o Governador sabe muito bem que Sócrates terá de o fazer. Sucede que o mesmo Governador sabe bem que os portugueses já são os europeus a quem é exigido o maior esforço fiscal (faça Zoom nas páginas 14 a 17), e que esse esforço é entendido quase sempre como dinheiro deitado à rua - uma vez que em cima dele têm ainda de comprar seguros de saúde, pagar propinas de escolas privadas e deixar dinheiro nas portagens da auto-estrada. Pagam, mas começam a não perceber para quê. E quando o esforço privado de cada um serve para financiar os erros de gestão políticos e as trapalhadas financeiras do Estado, então o caldo tem tudo para se entornar. O país está a chegar onde nunca chegou - e não culpem só a crise. A fatia pública que mais cresceu em Portugal (desde 1985) foram os impostos: mais do que a economia, mais do que despesa. É quase ultrajante: a preços acumulados e correntes, os impostos nacionais engordaram 964% entre 1985 e 2008. Pode dizer-se: o país está melhor, vive-se hoje um nível de conforto inimaginável no Portugal dos anos oitenta. Sim, mas se o custo é a banca rota que absurdo de país é este? Seria como se cada um de nós mudasse, em 20 anos, de apartamentos para sumptuosos palácios à beira-mar apenas para descobrir que... abriria falência. Que raio de políticos permitiram que isto acontecesse?» ler aqui na íntegra.

Martim Avillez Figueiredo, Jornal i, 24/11/2009

domingo, 22 de novembro de 2009

Kevin Ayers







Kevin Ayers, ver aqui site oficial.

sábado, 21 de novembro de 2009

Canção do dia(18): " Caribbean Moon " - Kevin Ayers(1973)

Premonição?

« Quando está a viver o fim de uma ilusão política, a sociedade não tolera uma agonia lenta e dolorosa, como nas doenças terminais. Vai procurar uma resolução antes de a decadência gerar a desordem e a violência, com cada um a procurar sobreviver, com os meios e os métodos que tiver ao seu alcance. A sociedade vai procurar a vítima expiatória, aquele que tem de ser sacrificado para poder ficar como o culpado de tudo, libertando a sociedade das suas responsabilidades no logro, e abrindo o vazio no palco do poder para que tudo possa recomeçar. A vítima expiatória é o que revela o mal, tornando evidente a impossibilidade de governar, mas é o que abre o caminho para o bem, ao aceitar ser o culpado do mal. Poderia ter sido Santana Lopes, mas nem sequer se apercebeu da impossibilidade de governar, não servia para expiar as culpas colectivas. Será José Sócrates, como deve ser. É quem empenhou a honra na defesa de uma ilusão que melhor ilustrará a impossibilidade de governar nessa ilusão. É por ele que o real vai emergir.»


Excerto da crónica " A procura da vítima expiatória ", de Joaquim Aguiar, publicada na revista Atlântico Nrº 3, de 26/05/2005

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Canção do dia(17): " Lee Remick " - The Go-Betweens(1978)



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Palavras levadas pelo vento

Avenida de França, Porto, 19/11/2009



Frases sopradas pelo vento:


- Agora tens que tratar dos papéis para o desemprego!


Uns passos mais à frente,


- Não te chega a experiência de 6 anos que tiveste com o outro?!

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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" Femme Mauresque III "
Fotografia de Mourad Garrach

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" Eva " de Jan van Eyck(1427)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Canção do dia(16): " (I´m Going By) The Stars in Your Eyes " - The Dramatics

A confissão de Vara

« Pois foi este o processo que eu segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro, enriquecendo. Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande, mas consegui. Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária. Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas já não pertence ao assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei a processos - confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos; empreguei tudo quanto há - açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal. O quê?! Eu combatia as ficções sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e havia de olhar às armas com que combatia a tirania?!»

Excerto de " O Banqueiro Anarquista ", de Fernando Pessoa

domingo, 15 de novembro de 2009

O homem que gostava de peixe*



«O que terá levado estes homens, acusados de actos ilícitos e de conspirações para fins eticamente reprováveis, a encontrarem-se aqui e não noutros locais? O ambiente? A possibilidade de passarem despercebidos? A proximidade dos seus locais de trabalho (nunca eram jantares, só almoços)? A facilidade de acesso? A qualidade do serviço? A comida? O preço? O acaso?
» ler aqui artigo completo.








* reportagem de Luís Francisco, ilustração de João Fazenda, P2(Público) de 15/11/2009

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« - Não há microfones pois não tem a certeza que não há microfones escondidos?
e o que eu escutava ao servir-lhes refrescos eram tosses e pigarros, e o que eu via ao entregar-lhes os copos eram pobres velhotes inofensivos, em camisa, desidratados, à beira da síncope, enxugando-se com o lenço, à procura de bobines e de gravadores nos saquinhos de sementes e na terra dos vasos, militares que prometiam regimentos façanhudos e colegas que profetizavam aldeias inteiras desembarcando de autocarro em São Bento, abades cabeludos aos berros nos púlpitos de Trás-os-Montes, você vai ver isto é facílimo acredite, a assembleia disposta a votar por unanimidade
por unanimidade afianço-lhe
o derrube do usurpador enquanto um cavalheiro centenário, a dormitar num banquinho de lona de nariz nas orquídeas, emergia de tempos a tempos do seu coma para exigir a espreguiçar-se num crocito sonâmbulo
- Não me vou daqui sem as Finanças não me vou daqui sem as Finanças
e até à noite, já sem se distinguirem nas trevas, distribuíram pastas, secretarias, embaixadas, comendas, direcções-gerais, esquartejando Portugal entre si como um borrego, com o velhote a insistir numa teimosia férrea
- Não me vou daqui sem as Finanças
partindo finalmente numa prudência de sussurros, com medo de aparelhos de escuta da polícia disfarçados nas guelras dos peixitos do lago, a esbarrarem no caramanchão e na capoeira enervando as galinhas, a picarem-se nos espinhos das rosas que boiavam no escuro, o senhor doutor para mim desiludíssimo
- Uma cambada de gágás Titina »


Excerto de " O Manual dos Inquisidores ", de António Lobo Antunes, Ed. Planeta DeAgostini, 2000

O escutador escutado

Banda sonora para um domingo chuvoso



Leituras de domingo(5)

« Existiu uma ambivalência de sentimentos? Houve um momento em que percebeu que ele era desprezível e simultâneamente digno de amor?

Eu não amava o meu pai. Um homem que faz 15 filhos a uma mulher não é respeitável! Ele respeitava Franco, respeitava o nacional-catolicismo. Era respeitado pelo franquismo, pela igreja: Tudo isto me parecia irracional, animalesco. A partir de determinado momento, deixámos de discutir. Se tinha que o ajudar em algum aspecto, económico ou outro, ajudava-o, mas nunca teve o meu carinho nem o meu respeito.

Nem quando era pequena? Nunca foi para si o pai herói? O pai-Deus, bom, grande, omnisciente, omnipotente.

Nunca tive essa ideia. Pergunto-me como é possível que haja mulheres que continuam a sentir fascinação pela figura do pai. É a figura do impositor, do guerreiro, o depositário da autoridade divina e social. Eu rebelo-me contra isso, geneticamente e ideologicamente.»


« Como é que tem assistido à polémica que envolve " Caim "?

Estes colunistas de merda, tão jovens, submissos, obsoletos, em vez de pensarem: "Um tipo com 86 anos que enfrenta Deus, que enfrenta a sociedade... Que sorte ter um homem com esta capacidade de rebeldia!", perguntam: "Quem é? Quem escreve? Não gosto!" Estou indignada de ver o pouco livre que são os jovens, o quão convencionais são, o quão cansados estão. Estão assustados porque José tocou num livro sagrado. Mas quem disse que o livro é sagrado? Que mentes tão pequenas julgam a obra pública. Não conseguem ver a grandeza nem de uma ponte nem de um ser humano. Têm uns óculos que lhes deve dar para verem o tamanho do seu pénis... pequenino.»

Excertos de entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Pilar del Río, publicada na Pública de 15/11/2009

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A preto e branco



Ao som de Haydn

Sábado.Sala Suggia.Casa da Música. Os músicos afinam os instrumentos, nos poucos minutos que faltam para começar o concerto.
Atrás de mim, duas senhoras para quem não dirigi o olhar.Conversam:

- Sabes que o Godinho é meu vizinho?
- Ai sim!?
- Ele contratou o Rodrigo Santiago, é o único capaz de o tirar da prisão.
- Oxalá!

E os sons de Haydn calaram a conversa.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

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«Que a Picasso le gustaba el sexo más que la miel al oso es cosa sabida. Toda su obra rezuma erotismo y así ha quedado claro en las diversas exposiciones sobre el tema que se han venido haciendo estos años. Lo que no era tan conocido es que atesoraba una excelente colección de estampas eróticas japonesas y que éstas, además, le influyeron en algunas de sus series de grabados. Pues, aunque no hay una estricta correspondencia formal, sí que pueden apreciarse curiosas coincidencias de composición en la manera de acoplarse de los amantes o en el interés por forzar la postura de manera que se aprecien los órganos genitales con pelos (nunca mejor dicho) y señales. Un poco a la manera de los shunga japoneses, una versión erótica de los ukiyo-e, de utilidad meridiana, en la que la delicadeza del dibujo no impide mostrar los coitos con todo detalle.» continuar a ler aqui.
Catalina Serra, El País, 05/11/2009

domingo, 1 de novembro de 2009

Canção do dia(12): "Howard" - Dent May & His Magnificent Ukulele(2009)

Leituras de domingo(4)

« Não acredito que os mortos nos ouçam, mas tu acreditavas e eu estou em Miranda.
Hoje vi um poema na parede com o teu nome por baixo. Quando morreste, o Mário Correia, do centro de música de Sendim, ficou sem fala. Depois foi ao livro dos visitantes e emoldurou aquilo que lá tinhas deixado no dia 23 de Julho de 2003.
E assim estás lá, no meio dos discos, dos filmes, das 1800 horas de música recolhidas pelas aldeias, e até hoje há uma cadeira vazia no Festival Intercéltico que é tua, diz o Mário. Foi ele que pela primeira vez te pôs uma gaita-de-foles nos braços, que festa.
O país de Lisboa enfeita-se de vez em quando com Miranda, mas aquilo eras tu.
Quantas textos nos mandaste daqui? Quantos concertos da June Tabor, quantos Intercélticos, quanta paixão?
Havia a música, a gente tocava, dançava, comia e bebia. E às tantas tu ias sozinho pelo planalto, ver a lua, ver o rio.
Diante do princípio do mundo que é o Douro em Miranda talvez Lisboa esteja extinta. Ou talvez tudo possa ainda começar.
Nas arribas hoje de manhã era Verão, o rio polido, as pedras quentes. Ma já havia árvores douradas e vermelhas e as folhas dos choupos flutuavam na água.
À hora do almoço fomos comer a posta à Gabriela. As alheiras, de entrada, tinham sido feitas ontem. Provámos compota de figo, abóbora, marmelo, ginja, cereja e pêra.
A Adelaide diz que já ninguém passa fome em Sendim, mas o pastor Lázaro, de Duas Igrejas, contou-nos que um pastor se enforcou há dias, deixando oito filhos, porque já não podia com as dívidas.
Ao lusco-fusco, as pedras entre Sendim e Bemposta pareciam grandes animais deitados.
A lua entrou antes do sol sair, quase cheia.
Não via a casa do teu Sporting, só a do Benfica, e à noite, na televisão, passou o Porto-Belenenses.
Na associação dos pauliteiros em Duas Igrejas poucos olhavam para o jogo. Os mais velhos batiam cartas, as raparigas comiam castanhas, os rapazes abriram o salão e fizeram três danças com os paus, incluindo a do salto de cavalo. Estavam cheios de proa por terem ido à América em Junho. Puseram-se a dançar em Times Square com as saias e tudo.
Hoje, domingo, 1 de Novembro, Miranda vai ver os seus mortos, levar-lhes flores, falar com eles. Parece que daqui se ouve melhor.
O Mário contou que quando vocês iam às arribas, ele dizia: " Como somos pequenos." E tu dizias: "Estás enganado, aqui somos enormes."
No poema que deixaste em Sendim, há este verso: "E das pedras se faz luz."
Fazias tu, e era isso que a gente lia.

( Fernando Magalhães, jornalista fundador do Público, morreu a 15 de Maio de 2005, aos 49 anos)»

" Carta de Miranda para o Fernando ", crónica de Alexandra Lucas Coelho, P2, Público, 01/11/2009

Morreu António Sérgio

Fotografia de Miguel Madeira(Público)


«O histórico radialista António Sérgio, o homem que foi a voz do "Lobo", morreu hoje de madrugada, aos 59 anos. A notícia foi confirmada ao PÚBLICO por Luís Montez, dono da rádio para a qual trabalhava actualmente, a Radar FM. Segundo Montez, António Sérgio terá morrido na sequência de um ataque cardíaco.» continuar a ler aqui.



Susana Almeida Ribeiro, Público Online, 01/11/2009





Pus o " Let it come down " dos Spiritualized a tocar. Estava a ouvir " Do it all over again " , ligo o computador e abro a página do Público. Morreu António Sérgio.
Quase chorei. Era um dos meus "heróis". Deu-me o " Som da Frente ", deu-me o " Grande Delta ", ajudou a construir a XFM( a " Ilha dos Amores " da rádio). Deixei de o ouvir por razões várias, embora continuasse a acompanhar o seu percurso.
Em sua homenagem, vou por a tocar a colêctanea do " Som da Frente ".

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Auto-Retrato



Canção do dia(11): " Inquietação " - José Mário Branco

Banqueiros...

« e cinco minutos depois descia as escadas para a rua no centro de uma chusma de militares maltrapilhos que os caixas aplaudiam, que os comunistas aplaudiam, que as empregadas da limpeza aplaudiam, que até a cabra da secretária, após um momentinho de hesitação, aplaudia mais forte do que os outros, de dedos tão carregados de ouro que ainda hoje estou para saber como lograva movê-los, cá fora os aplausos transformados em ameaças, um contínuo a pontapear-me o traseiro, um paquete a cuspir-me e eu de auscultador na orelha, incapaz de distinguir se era o pessoal do banco ou o delegado de Zurique quem me insultava, eu para o bocal enquanto me empurravam para uma furgoneta do Exército
- Perdão?
na cela de Caxias dei com os meus irmãos, os meus sobrinhos, os meus sócios, cada qual com o seu telefone em punho, a arrastar um pedaço de fio na ilusão de transferirem uma ninharia de dólares para Denver, para Paris, para Tóquio, para Barcelona, todos eles sem atacadores nem gravata a perguntarem à uma aos aparelhos mudos
- Perdão?»
Excerto de " O manual dos Inquisidores ", de António Lobo Antunes

Lá como cá

«La mayoría de los diputados ha rechazado en el Pleno del Congreso una iniciativa de Gaspar Llamazares (IU) para que los parlamentarios hagan públicos sus patrimonios y declaraciones de la Renta. El diputado defiende la iniciativa en la tribuna, pero en el último momento ni siquiera la ha sometido a votación al constatar que al menos PSOE, PP y CiU la iban a rechazar.» continuar a ler aqui.

Fernando Garea, El País, 29/10/2009

Branqueiros ?

( Imagem publicada no El País de 29/10/2009)


«Armando Vara é um dos 12 arguidos ontem constituídos no âmbito da operação Face Oculta desencadeada pelo Departamento de Investigação Criminal de Aveiro da Polícia Judiciária. O vice-presidente do Millennium BCP “não faz comentários”, disse ao PÚBLICO uma fonte oficial do banco, tendo o PÚBLICO apurado que Vara não está a ser alvo de investigação por actos praticados na sua qualidade de gestor daquela instituição financeira.» continuar a ler aqui.
António Arnaldo Mesquita, Público, 29/10/2009

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Canção do dia(10): " Across the Universe "* - Laibach(2006)

* original dos Beatles

Bartolomé Esteban Murillo


Ler e ver aqui na Wikipédia.

Viver para além da morte


«De todas las imágenes que vio, hay una que no se le va de la cabeza. La historiadora preserva el secreto de la tesis aún sin publicar y no da nombres. Revela sólo que es de un fotógrafo orensano "no muy conocido". "Aparecen un bebé muerto y su hermanito vivo que lo acompaña". A los niños que morían se los retrataba para conservar la memoria de su cara vista y no vista. A los mayores, además de por el recuerdo, se los solía fotografiar para dar fe del óbito a los familiares que estaban ausentes. La fotografía post mortem era un documento importante en el reparto de las herencias. Después de avisar al cura, se iba a por el retratista. Volvían andando o en burro. Más tarde en coche. El material pesaba, pero había prisa por llegar. Para sacar al muerto lo más vivo posible.» ler aqui artigo completo.
Silvia R. Pontevedra, El País( Galicia ), 27/10/2009

domingo, 25 de outubro de 2009

Leituras de domingo(3)

« Como Benjamim de Petrogrado, durante esse ano de 1922, cerca de 2700 padres e bispos, 2000 monges, 3400 religiosas foram executados. É uma das páginas mais negras da revolução bolchevique. Segundo relata Olivier Clément, nessa época os santuários são profanados, os ícones espezinhados, padres, bispos, fiéis são fuzilados, empalados, fervidos em água! Que Deus vos perdoe!, grita o bispo Vladimiro de Kiev no momento de ser fuzilado. A outro mártir, o professor do seminário de Voronej, Nectaire Ivanov, partiram-lhe as pernas e os braços, enfiaram-lhe no corpo bocados de madeira e obrigaram-no a comungar com chumbo fundido na boca. Antes de morrer, arranjou forças para se lembrar da fórmula bíblica: Senhor, deixa agora ir o seu servo em paz

Excerto de " Os Génios do Cristianismo ", de Henri Tincq, Trd. Público, Ed. Público, 1999

« Na saída principal, a turba esmagava-se, empurrava-se, atropelava-se, umas pessoas perdiam o chapéu, outras benziam-se... Da porta lateral, da qual se estilhaçaram dois vidros, saiu, recamada de ouro e prata, mas também espavorida e sufocada, a procissão com o coro. Manchas douradas vogavam no mar negro, do qual emergiam barretes purpúreos e mitras, e as bandeiras inclinavam-se, para transpor as portas, e voltavam logo a erguer-se.
Geava e toda a cidade parecia fumegar. O adro da igreja, conspurcado por milhares de pés, gemia sem cessar. Uma névoa glacial pairava no ar estático e subia para o campanário. O pesado sino de Santa Sofia tocava com força, a tentar abafar toda aquela horrível e vociferante desordem. Os sinos mais pequenos também faziam o que podiam, sem tom nem som, como se o próprio Diabo, oculto numa sotaina, se tivesse instalado no campanário e puxasse as cordas dos sinos, para se divertir. Pelas fendas negras do alto campanário, viam-se os sinos badalar, como cães furiosos a esticar as correntes. O frio cortava e a massa negra, amalgamada, de penitentes desembocava no adro. »

Excerto de " A Guarda Branca "(1922/1923), de Mikhaïl Bulgakov, Trd. Fernanda Pinto Rodrigues, Editorial Pórtico

Augusto Alves da Silva


Augusto Alves da Silva, exposição retrospectiva no Museu de Serralves. Ver aqui mais fotografias no site da Galeria Pedro Oliveira.

Um cigarro


Fotografia de Augusto Alves da Silva(2008)

Canção do dia(9): " Sem palavras " - Móveis Coloniais de Acaju(2008)

O nosso Cisco Kid


«Cada bairro é um xadrez, com os seus reis, e é disso que António Lobo Antunes agora fala, da malandragem. A gente sabe como ele gostava de ter sido o Cisco Kid, e já viu o que ele leu de policiais.»
Excerto de " Uma volta pela cabeça de António Lobo Antunes ", entrevista de Alexandra Lucas Coelho, publicada na Ípsilon de 23/10/2009.

sábado, 24 de outubro de 2009

Canção do dia(8) : " A ilha dos outros " - Nancy Vieira(2009)

Liza Minnelli








Imagens retiradas do Daily Mail de 02/10/2008


«A actriz e cantora norte-americana Liza Minnelli deverá testemunhar perante um juiz nova-iorquino, no processo interposto em 2004 pelo seu motorista, que a acusa de obrigá-lo a manter relações sexuais com ela, informou sexta-feira o New York Post.» continuar a ler aqui.

Jornal de Notícias, 23/10/2009

Escalpes...

" Miss Murder of McCrea ", Filadélfia(1840 ?), litografia de Thomas Sinclair


«Uma mulher que, em Agosto, apareceu nua ao lado de um BMW a arder no Marco de Canaveses terá sido, afinal, protagonista de encenação de sequestro e agressões que incluíram arranque de couro cabeludo. Foi a conclusão da investigação da PJ. » continuar a ler aqui.

Nuno Miguel Maia, Jornal de Notícias, 23/10/2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Canção do dia(6) : " Pata Pata " - Miriam Makeba(1977)

De onde viemos? Quem somos ? Para onde vamos?

Leituras de domingo(2)

«La generación a la que pertenezco dio varias batallas: por la revolución, el comunismo, la emancipación de la mujer, la libertad religiosa y la libertad sexual. Parecía que, habiendo perdido todas las otras, por lo menos en Occidente habíamos ganado esta última. Episodios como los que resumo en esta nota muestran que creer semejante cosa es una ilusión. ¿Qué clase de libertad sexual hay detrás de las villanías de este trío? Abusar de una niña de 13 años, gozar con adolescentes que son esclavos sexuales por culpa del hambre y la violencia y convertir en un burdel el poder al que se ha llegado mediante el voto de millones de ingenuos, son acciones que hacen escarnio de la libertad que precisamente clama porque en la vida sexual desaparezca esa relación de amo y esclavo que, en estos tres casos, se manifiesta de manera flagrante. La libertad sexual es en ellos una patente de corso que permite a quienes tienen fama, dinero o poder, materializar de manera impune sus deseos degradando a los más débiles. Apuesto mi cabeza que los tres héroes de estas historias reprobaron escandalizados las violaciones y abusos sexuales de niños en los colegios religiosos que han llevado al borde de la ruina a la Iglesia Católica en países como Estados Unidos e Irlanda, por las sumas enormes con que han debido compensar a las víctimas. Ni ellos ni sus defensores parecen conscientes de que sus proezas son todavía menos excusables que las de los curas pedófilos por la posición de privilegio que tienen y de la que abusaron, envileciendo con sus actos la noción misma de libertad. Cuánta razón tenía Georges Bataille cuando pronosticaba que la supuesta sociedad "permisiva" serviría para acabar con el erotismo pero no con la brutalidad sexual.»

" Desafueros de la libido ", por Mario Vargas Llosa, El País, 18/10/2009


« O sol baixava. Os dois fugitivos ouviram uns gritinhos que pareciam de vozes femininas; não se percebia bem se eram gritos de dôr ou de alegria. Êles puzeram-se logo em pé, com a inquietude e o alarme que tudo inspira num lugar desconhecido. Os clamores partiam de duas raparigas inteiramente nuas que corriam vivamente na borda do prado, seguidas por dois macacos que lhes mordiam nas nádegas. Cândido apiedou-se. Como, durante o seu tempo de serviço no exército búlgaro, havia aprendido a bem atirar e teria furado uma avelã numa moita sem tocar nas folhas, tomou a espingarda e matou os dois macacos.
- Graças a Deus, meu querido Cacambo, disse êle, salvei dum enorme risco essas pobres criaturas. Se cometi um pecado na hora em que matei um inquisidor e um jesuíta, reparei a minha falta salvando a vida de duas mulheres. Talvez sejam pessôas de categoria e esta aventura nos venha a trazer algumas vantagens no país.
Ia continuar, mas sentiu a língua prêsa quando viu as raprigas beijarem ternamente os dois macacos, debulharem-se em lágrimas sôbre os seus corpos, e encherem o espaço dos mais dolorosos gritos.
- Não esperava encontrar tamanha bondade, disse êle a Cacambo, o qual lhe replicou:
- Meu amo, o senhor meteu-se em bôa! Decerto matou os dois amantes dessas meninas!
- Amantes? exclamou Cândido. Será possível? Tu zombas de mim, Cacambo, não posso acreditar-te!
- Meu querido amo, respondeu Cacambo, o senhor espanta-se de tudo e de nada. Porque lhe parece tão extaordinário que nalgumas regiões os macacos obtenham as complacências das damas? Êles têm o seu bocado de homens, tal como eu tenho um quarto de sangue Espanhol.»


Excerto de " Cândido " de Voltaire, Trd. Maria Archer, Ed. Guimarães & Cª Editores

Auto-de-fé


« Após o tremor de terra que destruira três quartos de Lisboa os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fôra decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um feitiço infalível para impedira terra de tremer.
Por consequência agarraram num biscaínho, criminoso de casamento com a comadre, e em dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham posto de parte o toucinho. Depois do jantar amarraram o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado demais, o outro por ter escutado com ares de aplauso. Ambos foram conduzidos em separado para compartimentos de extrema friagem, nos quais o sol nunca incomodava ninguém. Oito dias passados ambos foram foram revestidos de sambenitos e adornaram-lhes as cabeças com mitras em papel. A mitra e o sambenito de Cândido traziam uma pintura de chamas erguidas, e no meio de vários diabos sem cauda nem garras. Sairam em procissão assim vestidos, ouvindo ao mesmo tempo um sermão intensamente patético, e acompanhados de uma bela música em falsête baixo. Cândido foi açoitado ao ritmo da música e do cântico; o biscaínho e os dois homens que não comiam toucinho foram queimados, e Pangloss foi enforcado, contrariamente ao que se esperava. Mas no mesmo dia a terra voltou a tremer com um fragor espantoso.»
" Cândido ", de Voltaire, Trd. de Maria Archer

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Canção do dia(4) : " Arrependimento " - Sam the Kid(2002)

« Se pudesse viver novamente, na próxima vida tentaria cometer mais erros. »


Jorge Luís Borges

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Canção do dia(3) : " Love of an Orchestra " - Noah and the Whale(2009)



No seu aniversário


« Senão, era ver Rosamaria, com o seu ar de bruxa em sabat, com aquele riso carnívoro que só de ouvi-lo era como um galope de garanhões e um voo de pretas aves em eucaliptos; como se trocassem moradas, rotas, mapas dos desejos. Era só ver a sua própria mulher, Beth, tão gasta como um pano de cozinha, dessa beleza que se convencionou ser austera, mas que é afinal sinal de maus ovários, mau fígado, más veias. O sangue corria aos tropeções nos seus capilares e eles rebentavam, e ficava a dor lancinante que ela dizia ser como uma agulha que passasse nas suas veias. Mas não dispensava ser amada, doente como era, sempre prestes a receber a dor como um filho, a enfaixá-la, a carregá-la no aconchego da carne; até tinha lubricidades, carinhos, apetites; era preciso, senão contentá-la, ao menos respeitar esses grotescos parênteses de amor que ela não merecia. O amor era para jovens belos e rapídissimos, que correm como o vento, saltam até às estrelas; e não aquele rugido triste de homem e mulher, aquela perseguição cheia de artes falsas, de ameaças, de ódio até, e que as crianças suspeitam como a chaga que respiram e que fede no quarto do casal. Os homens sabem que o amor é uma coisa divina, feita para gente divina; e, por isso, matam, porque não são divinos nem suportam interpretar o amor como uma farsa vulgar. Por isso morrem, e dão à morte nomes heróicos, como Sócrates deu, cruelmente marcado na sua prisão, que ele pediu para o corpo velho e sem esplendor, de verme com consequências divinas, mas não divino.»
Fotografia de Agustina Bessa Luís, por Jorge Afonso
Excerto de " Os meninos de ouro "(1983), Ed. Guimarães Editores, 7ª Edição(1987)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Canção do dia(2): " The Girl From Ipanema " - Astrud Gilberto(1964)*

* Música composta por Tom Jobim, incluída no álbum "Getz/Gilberto"(1964) de Stan Getz e João Gilberto.

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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