Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sexta-feira, 4 de maio de 2007

" Song Cycle " - Van Dyke Parks


Produzido por Van Dyke Parks, Ed. Rykodisc, 1968, Reed. 1999
Outro dos discos que eu amo, fantástico compositor e arranjador.

" O manuscrito encontrado em Saragoça,vol.1 e 2 " - Jan Potocki







Estudo critico de António Dominguez Leiva

The Incredible String Band

The Incredible String Band

" The Hangman´s Beautiful Daughter " - The Incredible String Band


Produzido por Joe Boyd, Ed. WEA/Elektra, 1968

Mais um dos discos da minha vida:

Apetece caminhar por uma floresta, entoando estes magnificos cânticos.

" O grande aperto " - Rámon Gómez de la Serna

" Nunca resolvi com tanta rapidez um caso grave como o daquele rapaz de rosto sensato.
Bastou-me entrar no gabinete dele - ao fundo do qual se encontrava a alcova - para perceber tudo.
A mesa de trabalho estava atafulhada de papéis, cujas pontas apareciam em estrela por todos os lados, nessa confusão indecifrável até para o dono capaz de identificar cada um dos papéis. Muitos livros, livros em excesso, amontoavam-se nela em pequenas rimas desmoronadas. O almanaque que tinha ficado parado numa data antiga. Na biblioteca havia grandes buracos entre os livros, e uma parte dos outros, asfixiando-os, comprimindo-os. Em todos os cantos daquele escritório havia folhas de papel, revistas, livros inúteis, jornais velhos, todas essa misérias que esperamos virem um dia a servir, que nunca servem e que dissimuladamente paralisam o aposento e a alma.
- Levante-se... Vamos arrumar o gabinete - disse-lhe eu sem preâmbulos, após ter visto toda a gravidade daquela desordem. Ele fitou-me, atónito, mas ergueu-se. Os meus clientes, quando são mesmo apanhados em flagrante, obedecem-me porque a isso os obriga uma força superior a eles mesmos.
Ficámos uma longa tarde arrumando o escritório. Ele deixava-se abater, mas eu tanto o animei que conseguimos concluir a tarefa.
Quando acabámos, deixou-se cair com lassitude numa poltrona. Mostrava optimismo no rosto.
- Quererá você fazer-me uma confissão sem pensar muito no que tenha a dizer? Não será este cansaço que você agora sente um cansaço agradável e salutar, o cansaço depois do qual se espera começar uma nova e alegre actividade? Não se sente você já curado por ter uma sensação de alívio?
- É verdade - respondeu ele com deleite. Sinto que saí da doença e só preciso de repousar o cansaço.
- Compreende agora qual era a sua doença? - concluí. - Não há nada pior do que aquilo que você andava a fazer... Soterrar a mesa debaixo dum monte de papéis, não tirar as folhas do almanaque, deixar-se invadir pelo pavor dos livros que entre si disputam serem lidos, alongando tanto essa disputa e de tal maneira a exasperando que acabam por não ser lidos... Tudo isso é uma deterioração tremenda, tudo isso semeia a cizânia na existência... E repare que não é a ordem aquilo que eu recomendo contra tais coisas; não senhor, o que eu proíbo é uma desordem impossível, uma desordem doente, gravíssima... "

Excerto de " O médico inverosímil ", de Ramón Gómez de la Serna, Trd.Júlio Henriques, Ed. Antígona

" Forever Changes " - Love

Produzido por Arthur Lee e Bruce Botnick, Ed. Elektra/Asylum Records, 1967

Fantástico disco, um dos melhores de sempre.

" The Return to form Black Magick Party " - Pop Levi

Ainda existem motivos para acreditarmos no Pop/Rock, e este disco é motivo para festejarmos.

" Ele foi Mattia Pascal " - Luigi Pirandello

" Por várias vezes, acordando no coração da noite ( mas neste caso, a noite demonstrava realmente não ter coração), aconteceu-me sentir no escuro, no silêncio, uma estranha estupefacção, um estranho incómodo ao recordar qualquer coisa feita durante o dia, à luz, sem prestar atenção; e perguntei, então, a mim mesmo se, na determinação das nossas acções, não concorrem também as cores, a vista das coisas que nos rodeiam, o ruído variado da vida. Mas é claro que sim, sem dúvida! E sabe-se lá quantas outras coisas! Não vivemos nós, segundo o senhor Anselmo, em união com o Universo ? Ora, é preciso ver quantas tolices este maldito Universo nos faz cometer, de que nós depois afirmamos responsável a nossa miserável consciência, pressionada por forças exteriores a ela, ofuscada por uma luz que vem de fora dela. E, ao invés, quantas deliberações feitas, quantos projectos arquitectados, quantos expedientes maquinados durante a noite não se mostram vãos e não se desmoronam e esfumam à luz do dia ? Como o dia é uma coisa e a noite outra, do mesmo modo talvez nós sejamos uma coisa de dia e outra de noite: uma coisa miserabilíssema, infelizmente, tanto de noite como de dia. "

Excerto da tradução de José J.C. Serra, Ed. Cavalo de Ferro

quinta-feira, 3 de maio de 2007

A propósito de Carmona Rodrigues

Nada melhor do que citarmos, parte de uma fala de Eteocles, na peça " Os sete conta Tebas ", de Ésquilo, Trd.revista por L. Pereira Gil, Ed. Ediclube


" Eteocles. - Que sorte ó deuses, une aqui este homem justo com os mais ímpios dos mortais? Em toda a empresa nada é mais funesto que a companhia de um malvado; o fruto que se apanha com eles é amargo; é um campo de misérias, onde se colhe a morte. Embarque-se um homem piedoso com navegadores malvados, que só persigam o crime, e ele perecerá com toda essa gente aborrecida dos deuses. Viva um justo no meio de um povo inospitaleiro, um povo que se esqueça dos deuses, e ver-se-á fatalmente preso na mesma rede; sucumbirá sob o divino azougue, que não distingue o bom do malvado..... "

As casas de Portugal

" As canalizações eram um caso à parte. Ao que parece, aqui pouco mudara através dos séculos, pois a água suja continuava mais ou menos a seguir o incontornável trajecto da gravidade. Infelizmente, muitas coisas conspiravam para obstruir as forças da natureza, muitas das quais cheiravam mal e à luz do dia ainda eram piores. Por mais que considerasse como minha missão mantê-las no subsolo, fora do alcance da vista, por vezes insistiam em abalar a harmonia e o equilíbrio dos Pintainhos e em subir à superfície. Escolhiam sempre a via da menor resistência, que, infelizmente, era a sanita, no rés-do-chão, ou o lavatório, ao pé desta.
Aqui, em Portugal, o principal problema das canalizações consistia em que havia dois tipos de águas residuais. Primeiro, a água residual propriamente dita, ou seja, a água suja proveniente de outras fontes, que não a sanita. Sendo esta água erroneamente considerada inofensiva, eram tomadas medidas sofisticadas para assegurar que não escorresse para os sistemas sépticos privados, mas sim para a via pública. A teoria consistia em que, sendo inofensiva, o seu despejo nas ruas de paralelepípedos não provocaria danos e contribuiria para os lavar e deixar brilhantes. Inicialmente, tentei argumentar que isso não era verdade. A água também transportava resíduos que se acumulavam nas juntas dos paralelepípedos. Além disso, as infecções virais propagar-se-iam mais facilmente, pois a água leitosa atravessava a aldeia à procura de terreno plano. Para não falar dos detergentes em suspensão, que deixavam uma película sobre os paralelepípedos, tornando-os escorregadios. No final, já estavam fartos de mim. Os aldeões sacudiam os ombros e diziam que nada havia a fazer. Era tradição e já era assim há séculos. "

Excerto de " Regresso à casa em Portugal ", de Richard Hewitt, Trd. Cláudia Muller-Porto, Ed. Gradiva

" De um momento para o outro, passou a haver casa a mais. Mas constituirão estas casa um verdadeiro património-valores e capitais para serem transmitidos entre gerações? "

Excerto de artigo de Rui Ramos, com o titulo " Casas de Portugal ", publicado na revista Atlântico de Maio de 2007.

Atlântico


A revista Atlântico tem um novo Blog

quarta-feira, 2 de maio de 2007

" O Castelo do Homem ancorado " - J.K. Huysmans

" Passava em revista os inconvenientes que o castelo já desvendara: vizinhança ameaçadora de animais e homens; humidade glaciar; falta de conforto e penúria de água; ainda por cima desleixos que o indignavam. Em vão procurara naquele labirinto um desses quartos que são confessionários do corpo, as salas preparadas para dar largas aos pendores secretos. Em baixo, perto do quarto da Marquesa, acabara por descobrir um cubículo mas em tal estadoque só correndo algum perigo se podia lá entrar.
E mais nada.
Exprimira o seu espanto ao tio Antoine, que começara por arregalar os olhos e depois olhara para Norine, divertidíssima a bater nas coxas.
- Pelos vistos, sobrinho, o que tu queres é cagar - disse ela entre dois soluços.
- Aqui todos arreiam lá fora, seja quem for!
Esta maneira simples de resolver uma embaraçosa questão exasperou o rapaz, pura e simplesmente. "

Excerto da novela " O Castelo do Homem ancorado " , de J.K. Huysmans, Tradução de Anibal Fernandes, Ed. Editorial Estampa

Frases de Nelson Rodrigues

Frases
Nelson Rodrigues

- O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: — o da imaturidade.

- Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.

- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.

- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.

- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.

- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.

- Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.

- O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo:
— um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.

- Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.

- Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.

- O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.

- A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.

- Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: — "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!

- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.

- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.

- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.

- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.

- Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito.

As frases polêmicas e cheias de humor de Nelson Rodrigues são publicadas como uma homenagem à passagem de seu aniversário de nascimento (23-08-1912). Elas foram selecionadas e organizadas por Ruy Castro, extraídas do livro "Flor de Obsessão", Cia. das Letras - São Paulo, 1997, págs. diversas.


Monocle


Esta revista virtual está muito atraente, e foi sugerida por Manuel Falcão, em artigo inserido na revista Atlântico de Maio 2007.

terça-feira, 1 de maio de 2007

" Everyman " - Philip Roth

Êxtase para continuar a se sentir vivo

Roth, que não se cansa de experimentar com próprio estilo, retorna à oposição entre corpo e intelecto

por Nadine Gordimer

Homem comum, Philip Roth, trad. Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, no prelo

Para três dos maiores romancistas do mundo, Carlos Fuentes, García Márquez e Philip Roth, a violenta irrupção do desejo sexual na velhice é a resistência do homem à morte. É a sacudida final da próstata, diria meu velho amigo médico.Mas o tema não pode ser resumido dessa forma perversa, não quando é abordado na ficção contemporânea desses escritores das duas Américas. Memórias de minhas putas tristes, de García Márquez, Inez, de Fuentes, e A marca humana, Animal agonizante e, agora, Homem comum, de Roth, têm em comum o fenômeno do desejo sexual tardio, apresentado como semelhante ao da adolescência. Quando “pensar é se encher de tristeza”, o último pedido de exuberância é ver o corpo lentamente desnudado; surge então a dúvida sobre a suposta superioridade das recompensas do intelecto. Em Animal agonizante, David Kepesh afirma que o fenômeno é a inegável afirmação do “patrimônio erótico”, e o mesmo vale para Homem comum, o novo protagonista sem nome (talvez porque seja o próprio autor) de Philip Roth.A história começa quando ele está morto. Mas o reconhecemos imediatamente: exerce uma profissão cultural (ainda que duvidosa) e gosta de passar o tempo pintando; foi casado várias vezes; tem filhos com os quais não se relaciona. É o homem que Roth escolheu, há muito tempo, para suportar o fardo humano, como qualquer escritor seleciona determinados tipos. Antes de morrer, esse jornalista cultural sepultado morou em uma cidade distante durante vários anos. Os parentes, entre os quais uma ex-esposa, estão no túmulo ao lado. Sua filha mais querida, Nancy, decidiu enterrá-lo em um cemitério judeu semi-abandonado, embora soubesse que o pai era ateu: ele amava os pais e ficaria assim perto deles.Roth exerce o direito de praticar diversos modos literários, mas não se cansa de experimentar com o próprio estilo. Do túmulo o homem é trazido de volta à vida e para um período anterior à sua concepção. Aqui, a cronologia da vida não é a do calendário, mas a das referências cruzadas; logo estaremos em um túmulo ainda mais antigo. Após a recriação da infância do jornalista cultural enquanto espera por uma das “intervenções médicas” que manterão seu corpo geriátrico, ele retorna ao dia do funeral de seu pai. É o mesmo cemitério judeu fundado por imigrantes. A joalheria do pai está viva em sua mente. Aberta em 1933, o negócio sugere bem a audácia dos imigrantes: “Diamantes, Jóias, Relógios”. Para que o nome judeu não “afugentasse ou assustasse os milhares de cristãos, ele estendeu o crédito livremente e nunca quebrou por isso: o benefício gerado por sua flexibilidade compensou”. Um bom homem, reconhece o filho.


Talvez somente em uma vida com certas limitações seja possível ser bom. A questão é intrigante e cabe ao leitor refletir lendo os escritos de Roth. A razão para se arriscar a abrir um negócio em plena depressão “era simples”: Ele “tinha de deixar algo aos dois meninos”. No contexto de Roth, não se trata de algo sentimental, mas de um princípio implícito de sobrevivência com conotações que levam o leitor à interminável presença dos imigrantes, geração após geração, de país a país, judeus, irlandeses, muçulmanos, sem outras raízes além do superficial vínculo estabelecido com o solo natal dos outros.Se a amplitude descritiva declinou no final do século XIX, Philip Roth, que percorre as épocas e os territórios do mundo, ressuscitou-a na descrição investida com o poder da narrativa. O túmulo do pai é – para o leitor sagaz, não para o filho – uma experiência pós-premonitória, cujo propósito é o retorno à sepultura em que Roth inicia a vida do filho, estabelecendo um vínculo entre este e seus antepassados. Nunca antes ele vira o ritual ortodoxo judeu, em que os parentes e não os funcionários do cemitério enterram o caixão. O que ele vê não é um punhado de pó simbólico sendo jogado, mas parentes e amigos erguendo pás de terra para cobrir o caixão. Imerso “na brutal retidão do enterro”, ele não experimenta reverência, mas horror. Repentinamente, “ele vê a boca de seu pai como se não houvesse caixão, como se a sujeira lançada na cova estivesse se depositando diretamente sobre ele, enchendo sua boca, cegando seus olhos, entupindo suas narinas e fechando seus ouvidos. (…) Ele ainda podia sentir a sujeira revestindo sua boca bem depois de deixar o cemitério e retornar a Nova York”. É o gosto da morte.“Professor do Desejo”: seria possível dar esse epíteto, título de um de seus primeiros romances, ao escritor Philip Roth, sem desrespeito e com admiração. Com o domínio e a integridade de sua escrita, Roth provou a diferença entre o erótico e o pornográfico, em uma época marcada pelo último. A premissa de sua obra é que nada que o corpo oferece deve ser rejeitado, desde que não cause dor. Com maravilhosa presunção ele parece ter escrito o Kama Sutra dos séculos XX e XXI. Ele afirma a alegria do intercurso sexual e a esplêndida habilidade do corpo.Se Portnoy nunca cresceu, apenas se tornou mais velho, ele é, em sua posição atual, um homem comum cujo criador faz do termo “insight” algo a ser deixado de lado por inadequado. O que Roth sabe da oposição/aposição entre corpo e intelecto é profundo e não pode ser ignorado, assim como o grafite de Thomas Mann na parede do século XX não pode ser apagado: “Em nossa época o destino do homem apresenta seu significado em termos políticos”. Roth aborda esse outro grande tema do impulso existencial humano – a política – com a mesma perspicácia com que trata da sexualidade. Os personagens de Roth, ativistas políticos ou não, vivem em nosso mundo – e o decoro da academia é seu microcosmo togado – aterrorizado pelo medo do Outro estrangeiro e pelo autoritarismo de Estado em nossa casa. Em seu soberbo e incomparável livro Complô contra a América, ele insere o passado no presente. A veneração por Charles Lindbergh torna plausível sua ascensão à presidência dos Estados Unidos, apesar da admiração por Hitler. Bush nunca elogiou os nazistas, mas não é nenhuma fantasia o entusiasmo que desperta, por meio do medo, nos americanos que votaram nele, americanos cujos filhos retornam mortos da guerra e que assistem as terríveis imagens de iraquianos mortos. O anti-semitismo de Lindbergh prenuncia os fundamentalismos que hoje nos acossam.
Saímos de Homem comum com a verdade clara de que a subserviência, conotações sexuais à parte, é uma traição à responsabilidade humana. A resistência é mais profunda em nós do que o impulso para a liberdade. Em Homem comum, a experiência sensual invoca a glória de estar vivo, mesmo que “se esquivar da morte se torne a preocupação central da vida e a decadência do corpo sua história”. Philip Roth é um magnífico vitorioso na tentativa de refutar a afirmação de George Lukács de que seria impossível o an¬seio do escritor de abarcar a vida inteira.

segunda-feira, 30 de abril de 2007

" Um bom homem é difícil de encontrar " - Flannery O´Connor


Machado de Assis

A vida é boa" (teria ele balbuciado "in extremis")

Ao meu lado num banco da Praça Mauá, antigo Cais Pharoux, Rio de Janeiro, senta-se um velho de traje escuro, pincenê, cabelo e barba grisalhos. Senta-se de leve, vagaroso, a balbuciar um pedido de licença. Maneiras severas, olhos encovados no rosto trigueiro.
— Cansado? — pergunto só para puxar conversa.
— Tudo cansa, até a solidão — ele me sopra lá do seu canto.
— Veio de longe, por acaso?
— Nem tanto. Do Cosme Velho. Moro lá, na rua do mesmo nome, número 18.
— Sozinho, como deu a entender?
— Sozinho desde o dia 20 de outubro de 1904. Ficaram-me os olhos malferidos, e a memória cheia de pensamentos idos e vividos.
— Perdão, mas o senhor não tem filhos?
— É verdade. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
— Mas evitou-os por intenção ou acaso?
O velho inclina a cabeça e medita um pouco.
— Creio que por acaso. Ou por força da natureza, que tudo pode e tudo transforma. Não vá pensar que Carolina e eu recorremos ao remédio que previne a concepção para sempre, e de que ouço falar na rua do Ouvidor.
O velho suspira e saca do bolso, com esforço, um lenço branco.
— Está se sentindo bem?
— Sinto a consciência, caro senhor. A consciência é o mais cru dos chicotes... O povo precisa fazer anualmente o seu exame de consciência.
— Pelo menos, de quatro em quatro anos, no dia das eleições — eu arrisco de novo.
— Concordo. Sou pela discórdia. Concórdia e pântano é a mesma fonte de miasmas e de mortes.
— Agora mesmo, essa fome no Nordeste... — eu insinuo, desdobrando o jornal.
— Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que um homem fraco pode cair na estrada, se não tiver alguma coisa no estômago.
O ancião curva-se para limpar a boca. Deve ter uns oitenta, penso.
— O jornal diz aqui que o povo está enviando comida para os flagelados.
— A comida não me preocupa. Virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar.
— De qualquer modo o Governo simula ação, pressionado pela opinião pública.
— Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
— Mas os saques? O que o senhor pensa dos saques aos supermercados?
— Não é a ocasião que faz o ladrão; a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito...
— Entendo. O senhor vota em que partido?
— Nenhum. Não me irrito, portanto, se me pagam mal um benefício. Antes cair das nuvens que de um terceiro andar.
— Já sei: o senhor, como muitos brasileiros, perdeu a fé.
— Não é bem assim. Tenho o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.
Onde eu já teria ouvido ou lido essas palavras? Folheio o jornal.
— Vejo que o senhor não dispensa as folhas — observa o velho. — O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.
— Se o senhor fosse presidente, o que faria?— pergunto.
— Eu, presidente? Sei que a presidência, aceita-se... Mas falta-me aquela força precisa para trair os amigos. Eu gostaria era de ser um rei sem súditos... Se eu perdesse um pé, não teria o desprazer de ver coxear os meus vassalos. Mas quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito superior e anterior a todas as leis.
— E a corrupção, pensando bem, é uma lei humana...
— Mais ou menos, meu jovem. O conselho de Iago é que se meta dinheiro no bolso. Corrupção escondida vale tanto como a pública; a diferença é que não fede. Se tiver de sujar-se, suje-se gordo!
— No seu entender, o Brasil vai bem ou perde-se?
— O país real, esse é bom; o povo revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.
Tal comentário traz à baila a questão da dívida externa, que está deixando o país de joelhos. Mas o meu interlocutor, que parece ter resposta engatilhada para tudo, objecta:
— Que é pagar uma dívida? É suprimir, sem necessidade urgente, a prova do crédito que um homem merece. Aumentá-la é fazer crescer a prova.
— O problema é que a dívida legou-nos uma herança trágica...
— Ora, heranças... Há dessas lutas terríveis na alma de um homem. Não, ninguém sabe o que se passa no interior de um sobrinho, tendo de chorar a morte de um tio e receber-lhe a herança. Oh, contraste maldito! Aparentemente tudo se recomporia, desistindo o sobrinho do dinheiro herdado; ah! Mas então seria chorar duas coisas: o tio e o dinheiro.
Meu interlocutor disfarça leve bocejo e comenta, com um vestígio de sorriso irônico, que dormir é um modo interino de morrer. De repente, ele está mais loquaz. Do sono sinônimo de morte pula para o tempo, sinônimo de tédio, e sugere o dilema: matamos o tempo, o tempo nos enterra.
Ficamos a olhar perto, no cais, um grupo de negros a descarregar um caminhão. Sacas pesadas, talvez de sessenta quilos. Café? Comento que aquele trabalho é deveras pesado.
— O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas — suspira o velho.
Com o lenço, limpa as lentes. Tem ar alheado. A observação sobre o trabalho o faz pensar em tema assemelhado.
— A honestidade — balbucia. — Ah, a honestidade... Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco.
—É tudo uma questão de consciência — eu arrisco.— E a boa consciência, muitas vezes, está com os vencidos da vida.
— Nada mais exato, mancebo. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Pausa. A cabeça do ancião de pincenê pende para o peito. Mas os olhos me parecem vivos, deles se desprende uma luz quase crua. De repente ele volta a falar, como se reatasse um monólogo.
— Ah, se eu houvesse de definir a alma humana...
— Como a definiria? Pode dizer-me?
— Eu diria, meu jovem, que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em quem os vícios dormem sempre e as virtudes velam, e os maus...
Meu interlocutor deixa a frase no ar, dobra o corpo e massageia um pé.
— São os calos, mestre?
— São as botas. Botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar.
Aperta o pincenê nos olhos míopes, olha-me com firmeza e conclama:
— Mortifica os pés, desgraçado; desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro.
Passa por nós um vendedor de loterias e tenta impingir-me o sweepstake. Recuso. O velho ao lado acode:
— Compre de vez em quando. A loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.
— Não gosto muito de jogos...
— Pois eu adoro o xadrez. Jogo delicioso, por Deus!... a rainha come o peão, o peão come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos. Graciosa anarquia...
O velho faz um movimento para erguer-se. Digo-lhe que é cedo, que a prosa está boa.
— Não é que seja tarde. É que vai chover. Tive um personagem que, quando o relógio parava, dava-lhe corda, para que ele não parasse de bater nunca, e ele pudesse contar todos os seus instantes perdidos.
— Tem certeza que vem chuva?
— Com pingos d’água é que se alagam as ruas. Ah, uma lágrima! Quem nos dera uma lágrima única! Mas o mundo cresceu do dilúvio para cá, a tal ponto que uma lágrima apenas chegaria a alagar Sergipe ou Bélgica.
Pausa. Por nós passa um bêbado e dá uma viva à Sereníssima República. Olho a praça, a ver se começa a inundar-se, e nesse átimo o velho mestre desaparece. Desvaneceu-se qual ectoplasma. Será que estive a ouvir o bruxo Machado de Assis? Nesse caso, respondo pelas transcrições, que o meu fino leitor identificará. Se não identificar, dou-lhe um piparote, e adeus.

Belos cavalos

" Saíram a cavalo para oeste com o sol pelas costas e as suas sombras cavalo e cavaleiro a tombar à frente deles altas como árvores. O terreno em que se encontravam era de lava antiga e eles mantiveram-se à margem da planície de cascalho negro que se estendia adiante e conservaram-se atentos ao que se passava atrás deles. Tornaram a ver os cavaleiros, a sul de onde os teriam situado. E depois uma outra vez."

Excerto do livro " Belos Cavalos ", de Cormac Mccarthy, tradução de Graça Margarido, Editorial Teorema, 1994

The Decisive Moment



"A land-owner died. His body was taken out to the burial ground in a shiny black motor hearse. Members of the family rode in a stage-coach; cowhands and ranch help came on horseback. During the funeral, this one old cowboy bowed his head at the graveside." The Decisive Moment (1952)

Henri Cartier-Bresson


Robert Capa


Turner


Turner


Velázquez


Sandy Denny

" Who KnowsWhere The Time Goes " de Sandy Denny é um dos discos da minha vida. Trata-se de uma compilação editada em vinyl, em 1985, pela Island Records Ltd, produzida por Trevor Lucas e Joe Boyd.
Injustamente esquecida, trata-se de um génio de emoção, beleza, encantamento.

Philip Roth

Philip Roth O escritor cruel já pode morrer 19.03.2007, João Bonifácio

Philip Roth tornou-se o primeiro escritor norte-americano a vencer três vezes o Pen/Faulkner Award, o mais importante galardão literário americano, desta feita por Everyman, o seu último livro. A consagração para um dos ilustres membros do mais famoso curso de escrita criativa dos EUA, o Iowa Writers" Workshop
a Philip Roth, nas cada vez mais raras entrevistas que dá, não deixa que lhe tirem fotografias. Abre uma excepção se não insistirem para sorrir. Sorrir é que ele não quer. Pelo menos foi assim há dois anos, quando um repórter do jornal inglês Guardian se deslocou de propósito a Nova Iorque para o entrevistar aquando do lançamento de Everyman, o seu último livro que vai ser publicado em Maio nas Publicações Dom Quixote com o título Todo-o-Mundo. O espantado jornalista quis saber se ele nunca sorria. "Claro que sim. Para dentro, quando estou a um canto da sala e ninguém me está a ver", foi a resposta. Roth há-de estar a rir-se agora, no seu retiro de escrita onde passa a maior parte do ano sozinho, e há-de estar a rir-se à conta desse exacto livro, Everyman, que, em finais de Fevereiro, foi laureado com o Pen/Faulkner Award, o mais importante galardão literário americano. Mas não é só isso: Roth tornou-se assim o único escritor americano a vencer três vezes esse prémio abençoado pelo escritor maldito William Faulkner. Ele é um dos raros escritores a juntar o National Book Award ao PEN/Faulkner e ao Pulitzer, foi considerado por Harold Bloom (o mais importante ensaísta americano, ao lado de George Steiner) um dos quatro maiores escritores americanos de sempre (juntamente com Thomas Pynchon, Don DeLillo e Cormac McCarthy) e é apenas o terceiro escritor americano a ver a sua obra completa ser publicada pela Library of America (a publicação estará terminada em 2013). É um anual candidato ao Nobel, mas, dizem os que lhe são próximos, até lhe agrada perder (coisa rara). É como se Roth fosse finalmente entronizado como maior escritor americano vivo, mas não é só isso: é a aceitação do judeu de classe média nascido em Newark, New Jersey como o maior analista da sua geração. E dos habituais candidatos ao título de maior escritor americano de sempre, o seu nome é o que surge mais vezes: Roth, imagine-se, é consensual, mesmo odiado. Sim, Philip Roth já pode morrer. Pelo menos foi isso que ele disse na tal entrevista ao Guardian: "Já não me parece uma injustiça tão grande morrer". Roth teria a noção de que com Everyman teria completado o essencial da sua obra, deixado um legado que abarcava os temas essenciais da sua época e da sua identidade. A ironia é que o livro que o consagra oficialmente é uma longa meditação sobre a morte, aqui e ali quase eivada de ternura, e despojada de crueldade de uma forma que tinha estado totalmente ausente dos últimos 25 anos da sua escrita. (A propósito de Everyman quase se pode falar de arrependimento.) E, no entanto, foi preciso esperar até estes últimos 25 anos para que Roth atingisse a grandeza que agora o consagra. Durante muitos anos Roth foi, acima de tudo, um sátiro, um violentíssimo crítico do mundo americano, empenhado em polemizar em questões sexuais, políticas (um dos seus livros "menores", Our Gang, é um desbragadíssimo ataque aos anos da presidência Nixon, tão acerrimamente destrutivo quanto qualquer coisa que Kurt Vonnegut ou Mailer tenham escrito), religiosas. O segundo filho de dois judeus de classe média de Newark venceu o National Book Award em 1960 logo ao primeiro livro, Goodbye Columbus (escrito em 59). Tinha estudado Literatura Inglesa em várias universidades (Bucknell, depois a de Chicago), depois deu aulas de escrita na de Iowa e em Princeton. Pelo meio esteve no Exército, experiência que lhe serviu para escrever a personagem do comunista caído em desgraça Ira Ringold, de Casei com um Comunista, o livro em que, como sempre, expiava os demónios da sua vida pessoal, vingando-se da ex-mulher, Clarie Bloom. O importante é o livroÉ necessária aqui uma explicação. Roth sempre usou a sua vida privada nos seus livros. Ele não o nega, mas também não o afirma - menoriza. "Pouco me importa se sou eu ou é uma personagem. O que me interessa é o livro", dizia na entrevista ao Guardian - e procurem outras entrevistas: ele dirá o mesmo. Já o fazia no início da carreira, em My Life As a Man e O Complexo de Portnoy (Bertrand), o seu terceiro livro e primeiro maior. A personagem feminina de ambos era inspirada na sua primeira mulher, Margaret Martinson, que lhe fora apresentada por Saul Bellow - que entretanto se tornara seu amigo. Por toda a sua vida Roth deixaria espalhados pedaços de si nos seus livros, o que muitas vezes foi motivo de escândalo. Bellow era uma espécie de ancião da chamada geração dos liberais, que, grosso modo, incluía E.L. Doctorow, Norman Mailer, Thomas Pynchon, Don DeLillo, Tom Wolfe, Hunter S. Thompson, William Styron (amicíssimo de Roth), John Updike, William Gaddis. Salinger retirou-se cedo, Gore Vidal (grande amigo de Roth) nascera na "aristocracia" americana e não poderia nunca representar o homem americano, Gaddis escreveu pouco (mas Roth leu-o e assimilou a noção do diálogo como motor da acção), Styron viveu mais assombrado pelo alcoolismo e pelas depressões do que pela literatura, DeLillo é demasiado cerebral (e menos narrativo), Updike demasiado centrado nas questões sexuais, mas todos eles (juntos ou uns contra os outros, à conta dos ciúmes) levaram a literatura americana a pensar o que era essa coisa de ser norte-americano. E juntos (ou uns contra os outros) foram os primeiros a poder olhar para a América para lá da grande nuvem negra da Grande Depressão da década de 30 que fora o principal motivo de escrita da geração anterior. Roth tinha mais uma vantagem face aos outros: era, à excepção de Pynchon (cujo génio delirante sempre foi de difícil recepção), Gaddis e Styron, dos menos politizados - estava livre para fazer de tudo um alvo. Inclusive de si próprio. É difícil traçar o momento em que essa pequena revolução geracional começa, mas há quem aponte um nome, um livro e uma data: a abertura de The Adventures of Augie March (54), de Saul Bellow, que começava assim: "Eu sou um americano...". Era possível falar dessa identidade sem raiz, e Roth fê-lo, 40 anos a fio. Ironia das ironias, é com o biográfico Patrimony (91) que começa o grande Roth, o Roth enorme, épico, empenhado em mostrar as grandezas e defeitos do homem médio. Patrimony não era um livro sobre si mesmo (esse era Operation Shylock: A Confession, de 93), era algo mais cruel: uma descrição de mais de 200 páginas da morte do pai do escritor. A crítica ficou deslumbrada com o herói americano Roth senior, mas pareceu não reparar na violência das descrições físicas e escatológicas do definhar de Roth pai (que incluíam a incontinência do senhor e seus efeitos práticos). Pegue-se num americano comum, que, vindo do nada, construiu alguma coisa: este é o sonho americano. Agora pegue-se nesse homem e algures nos cimos da sua vida ponha-se uma encruzilhada e ele, embriagado de si mesmo, não nota que tem de tomar uma decisão - e segue o caminho errado: desse livro para a frente foi este o método de Roth, que atinge, teoricamente, o seu epíteto em A Mancha Humana (que é considerado um Roth menor), quando o narrador proclama: "Ninguém sabe nada de si mesmo". É esse o cerne da escrita de Roth: a ideia de que isto, isto que vivemos todos os dias, tudo pelo qual lutamos infernalmente para construir em nosso favor - é baseado no absurdo. Os nossos valores, as nossas regras, as nossas crenças, mesmo as nossas forças: não dependem de nós, são heranças ou acasos e podem ruir a qualquer instante. "A História entra-nos na sala de jantar", disse Roth numa entrevista: e "Ninguém sabe nada de si mesmo". Sabemos apenas, diz-nos sub-repticiamente Roth, que tentamos em vão (e pateticamente, acrescentaria ele) dominar as nossas pulsões. Roth queria chegar aí, a esse lugar primevo onde elas ainda existem em toda a sua força - e conseguiu-o na sua obra-prima de 95, O Teatro de Sabbath (traduzido na Dom Quixote). É a epopeia de Mickey Sabbath, ex-bonecreiro cujo único interesse na vida depois do suicídio da sua ex-mulher são as cópulas com a mulher do estalajadeiro da cidade - e cuja vida rui aquando da morte dela. Sabbath é uma das personagens mais viscerais de Roth, quase tão violento e frágil na sua busca da sexualidade livre como sustento à vida quanto uma personagem de Cormac McCarthy. A vida ela mesmaDesde os anos 70 Roth andava a usar dois alter-egos: Nathan Zuckerman, o mais próximo de si, escritor, e David Kepesh, espécie de lugar onde Roth depositava as suas diatribes sexuais. É com Zuckerman que Roth, partindo da matriz iniciada com O Teatro de Sabbath, escreve a maior parte dos seus épicos fulminantes (Pastoral Americana, de 1997, Casei com um Comunista, 98 e A Mancha Humana, 2000). Mas agora, em vez de uma personagem maior que a vida, Roth entretinha-se com a vida ela mesma: "Penso que a decisão de como escrever já estava tomada quando quis ser escritor, isto é, ver a história através da vida de pessoas comuns sempre me interessou". Mas este é o homem que disse um dia que "quando se tem muitos pormenores num livro, tem-se a vida" e esses livros não eram apenas descrições de vidas comuns, eram rasgos na história americana, em que cada homem comum era levado a confrontar-se com o seu tempo, com os paradigmas de pensamento que nos enformam - até à mais profunda dor. Casei com um Comunista é um paradigma do que Roth pode fazer com as palavras. Em 94, ele separara-se de Claire Bloom, sua companheira durante 17 anos, que dois anos mais tarde escreveu a sua autobiografia como desculpa para um violento ataque ao escritor, acusando-o de crueldade psíquica e de pôr a filha da actriz (estrela de Luzes da Ribalta, de Chaplin) fora de casa. O caso resultou em escândalo, com John Updike a fazer uma recensão ao livro de Bloom. Apenas Gore Vidal saiu em defesa do seu amigo. Mas um ano depois Roth respondia: Casei com um Comunista conta a vida de Ira Ringold, judeu nascido em Newark que se torna estrela de rádio e casa com uma ex-estrela de cinema mudo que tem uma relação de dependência psíquica e abuso com a sua filha. No livro, Roth descreve a queda de Ira às mãos de um livro da mulher que o acusara de comunisno durante a época mccarthista. Crueldade do escritor, vingança? Impossível saber. Em Outubro deste ano haverá novo livro de Roth, Exit Ghost, mas, confiando nas palavras dele, valerá de pouco: "Um, oh, não me parece que dentro de 20 ou 25 anos as pessoas andem a ler estas coisas", disse, em entrevista recente. Porquê? Porque "há outras formas das pessoas se ocuparem". Têm 25 anos para ler Roth, o escritor cruel. E Roth já pode morrer.

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