A vida é boa" (teria ele balbuciado "in extremis")
Ao meu lado num banco da Praça Mauá, antigo Cais Pharoux, Rio de Janeiro, senta-se um velho de traje escuro, pincenê, cabelo e barba grisalhos. Senta-se de leve, vagaroso, a balbuciar um pedido de licença. Maneiras severas, olhos encovados no rosto trigueiro.
— Cansado? — pergunto só para puxar conversa.
— Tudo cansa, até a solidão — ele me sopra lá do seu canto.
— Veio de longe, por acaso?
— Nem tanto. Do Cosme Velho. Moro lá, na rua do mesmo nome, número 18.
— Sozinho, como deu a entender?
— Sozinho desde o dia 20 de outubro de 1904. Ficaram-me os olhos malferidos, e a memória cheia de pensamentos idos e vividos.
— Perdão, mas o senhor não tem filhos?
— É verdade. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
— Mas evitou-os por intenção ou acaso?
O velho inclina a cabeça e medita um pouco.
— Creio que por acaso. Ou por força da natureza, que tudo pode e tudo transforma. Não vá pensar que Carolina e eu recorremos ao remédio que previne a concepção para sempre, e de que ouço falar na rua do Ouvidor.
O velho suspira e saca do bolso, com esforço, um lenço branco.
— Está se sentindo bem?
— Sinto a consciência, caro senhor. A consciência é o mais cru dos chicotes... O povo precisa fazer anualmente o seu exame de consciência.
— Pelo menos, de quatro em quatro anos, no dia das eleições — eu arrisco de novo.
— Concordo. Sou pela discórdia. Concórdia e pântano é a mesma fonte de miasmas e de mortes.
— Agora mesmo, essa fome no Nordeste... — eu insinuo, desdobrando o jornal.
— Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que um homem fraco pode cair na estrada, se não tiver alguma coisa no estômago.
O ancião curva-se para limpar a boca. Deve ter uns oitenta, penso.
— O jornal diz aqui que o povo está enviando comida para os flagelados.
— A comida não me preocupa. Virá de Boston ou de Nova Iorque um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar.
— De qualquer modo o Governo simula ação, pressionado pela opinião pública.
— Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
— Mas os saques? O que o senhor pensa dos saques aos supermercados?
— Não é a ocasião que faz o ladrão; a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito...
— Entendo. O senhor vota em que partido?
— Nenhum. Não me irrito, portanto, se me pagam mal um benefício. Antes cair das nuvens que de um terceiro andar.
— Já sei: o senhor, como muitos brasileiros, perdeu a fé.
— Não é bem assim. Tenho o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.
Onde eu já teria ouvido ou lido essas palavras? Folheio o jornal.
— Vejo que o senhor não dispensa as folhas — observa o velho. — O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.
— Se o senhor fosse presidente, o que faria?— pergunto.
— Eu, presidente? Sei que a presidência, aceita-se... Mas falta-me aquela força precisa para trair os amigos. Eu gostaria era de ser um rei sem súditos... Se eu perdesse um pé, não teria o desprazer de ver coxear os meus vassalos. Mas quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito superior e anterior a todas as leis.
— E a corrupção, pensando bem, é uma lei humana...
— Mais ou menos, meu jovem. O conselho de Iago é que se meta dinheiro no bolso. Corrupção escondida vale tanto como a pública; a diferença é que não fede. Se tiver de sujar-se, suje-se gordo!
— No seu entender, o Brasil vai bem ou perde-se?
— O país real, esse é bom; o povo revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.
Tal comentário traz à baila a questão da dívida externa, que está deixando o país de joelhos. Mas o meu interlocutor, que parece ter resposta engatilhada para tudo, objecta:
— Que é pagar uma dívida? É suprimir, sem necessidade urgente, a prova do crédito que um homem merece. Aumentá-la é fazer crescer a prova.
— O problema é que a dívida legou-nos uma herança trágica...
— Ora, heranças... Há dessas lutas terríveis na alma de um homem. Não, ninguém sabe o que se passa no interior de um sobrinho, tendo de chorar a morte de um tio e receber-lhe a herança. Oh, contraste maldito! Aparentemente tudo se recomporia, desistindo o sobrinho do dinheiro herdado; ah! Mas então seria chorar duas coisas: o tio e o dinheiro.
Meu interlocutor disfarça leve bocejo e comenta, com um vestígio de sorriso irônico, que dormir é um modo interino de morrer. De repente, ele está mais loquaz. Do sono sinônimo de morte pula para o tempo, sinônimo de tédio, e sugere o dilema: matamos o tempo, o tempo nos enterra.
Ficamos a olhar perto, no cais, um grupo de negros a descarregar um caminhão. Sacas pesadas, talvez de sessenta quilos. Café? Comento que aquele trabalho é deveras pesado.
— O trabalho é honesto, mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas — suspira o velho.
Com o lenço, limpa as lentes. Tem ar alheado. A observação sobre o trabalho o faz pensar em tema assemelhado.
— A honestidade — balbucia. — Ah, a honestidade... Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco.
—É tudo uma questão de consciência — eu arrisco.— E a boa consciência, muitas vezes, está com os vencidos da vida.
— Nada mais exato, mancebo. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Pausa. A cabeça do ancião de pincenê pende para o peito. Mas os olhos me parecem vivos, deles se desprende uma luz quase crua. De repente ele volta a falar, como se reatasse um monólogo.
— Ah, se eu houvesse de definir a alma humana...
— Como a definiria? Pode dizer-me?
— Eu diria, meu jovem, que ela é uma casa de pensão. Cada quarto abriga um vício ou uma virtude. Os bons são aqueles em quem os vícios dormem sempre e as virtudes velam, e os maus...
Meu interlocutor deixa a frase no ar, dobra o corpo e massageia um pé.
— São os calos, mestre?
— São as botas. Botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar.
Aperta o pincenê nos olhos míopes, olha-me com firmeza e conclama:
— Mortifica os pés, desgraçado; desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro.
Passa por nós um vendedor de loterias e tenta impingir-me o sweepstake. Recuso. O velho ao lado acode:
— Compre de vez em quando. A loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.
— Não gosto muito de jogos...
— Pois eu adoro o xadrez. Jogo delicioso, por Deus!... a rainha come o peão, o peão come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos comem a todos. Graciosa anarquia...
O velho faz um movimento para erguer-se. Digo-lhe que é cedo, que a prosa está boa.
— Não é que seja tarde. É que vai chover. Tive um personagem que, quando o relógio parava, dava-lhe corda, para que ele não parasse de bater nunca, e ele pudesse contar todos os seus instantes perdidos.
— Tem certeza que vem chuva?
— Com pingos d’água é que se alagam as ruas. Ah, uma lágrima! Quem nos dera uma lágrima única! Mas o mundo cresceu do dilúvio para cá, a tal ponto que uma lágrima apenas chegaria a alagar Sergipe ou Bélgica.
Pausa. Por nós passa um bêbado e dá uma viva à Sereníssima República. Olho a praça, a ver se começa a inundar-se, e nesse átimo o velho mestre desaparece. Desvaneceu-se qual ectoplasma. Será que estive a ouvir o bruxo Machado de Assis? Nesse caso, respondo pelas transcrições, que o meu fino leitor identificará. Se não identificar, dou-lhe um piparote, e adeus.