Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sexta-feira, 4 de maio de 2007

" O grande aperto " - Rámon Gómez de la Serna

" Nunca resolvi com tanta rapidez um caso grave como o daquele rapaz de rosto sensato.
Bastou-me entrar no gabinete dele - ao fundo do qual se encontrava a alcova - para perceber tudo.
A mesa de trabalho estava atafulhada de papéis, cujas pontas apareciam em estrela por todos os lados, nessa confusão indecifrável até para o dono capaz de identificar cada um dos papéis. Muitos livros, livros em excesso, amontoavam-se nela em pequenas rimas desmoronadas. O almanaque que tinha ficado parado numa data antiga. Na biblioteca havia grandes buracos entre os livros, e uma parte dos outros, asfixiando-os, comprimindo-os. Em todos os cantos daquele escritório havia folhas de papel, revistas, livros inúteis, jornais velhos, todas essa misérias que esperamos virem um dia a servir, que nunca servem e que dissimuladamente paralisam o aposento e a alma.
- Levante-se... Vamos arrumar o gabinete - disse-lhe eu sem preâmbulos, após ter visto toda a gravidade daquela desordem. Ele fitou-me, atónito, mas ergueu-se. Os meus clientes, quando são mesmo apanhados em flagrante, obedecem-me porque a isso os obriga uma força superior a eles mesmos.
Ficámos uma longa tarde arrumando o escritório. Ele deixava-se abater, mas eu tanto o animei que conseguimos concluir a tarefa.
Quando acabámos, deixou-se cair com lassitude numa poltrona. Mostrava optimismo no rosto.
- Quererá você fazer-me uma confissão sem pensar muito no que tenha a dizer? Não será este cansaço que você agora sente um cansaço agradável e salutar, o cansaço depois do qual se espera começar uma nova e alegre actividade? Não se sente você já curado por ter uma sensação de alívio?
- É verdade - respondeu ele com deleite. Sinto que saí da doença e só preciso de repousar o cansaço.
- Compreende agora qual era a sua doença? - concluí. - Não há nada pior do que aquilo que você andava a fazer... Soterrar a mesa debaixo dum monte de papéis, não tirar as folhas do almanaque, deixar-se invadir pelo pavor dos livros que entre si disputam serem lidos, alongando tanto essa disputa e de tal maneira a exasperando que acabam por não ser lidos... Tudo isso é uma deterioração tremenda, tudo isso semeia a cizânia na existência... E repare que não é a ordem aquilo que eu recomendo contra tais coisas; não senhor, o que eu proíbo é uma desordem impossível, uma desordem doente, gravíssima... "

Excerto de " O médico inverosímil ", de Ramón Gómez de la Serna, Trd.Júlio Henriques, Ed. Antígona

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