Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sábado, 3 de janeiro de 2009

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No aniversário de J.D.Salinger

" Ia ainda na minha primeira chávena de chá, quando entrou na sala a miúda que eu tinha estado a ver e a ouvir cantar. Os cabelos estavam encharcados e tinha os bordos das orelhas à mostra. Vinha acompanhada de um rapazinho, indubitavelmente irmão dela, a quem tirou o boné da cabeça com dois dedos, como se fosse um espécime laboratorial. A fechar o cortejo, vinha uma mulher de ar enérgico com um chapéu de feltro mole - presumivelmente a governanta. A miúda do coro, despindo o casaco enquanto atravessava a sala, escolheu a mesa - uma boa escolha, do meu ponto de vista, pois estava apenas a dois ou três metros à minha frente. Ela e a governanta sentaram-se. O rapazito, que tinha uns cinco anos, não estava ainda no ponto para se sentar. Deslizou para fora do casacão e deixou-o a um lado; depois, com a expressão matreira de um diabrete nato, pôs-se a importunar metodicamente a governanta empurrando e puxando-lhe a cadeira várias vezes, observando a cara que ela fazia. A governanta, em voz baixa, disse-lhe duas ou três vezes para se sentar e se deixar já daquelas macaquices, mas foi só quando a irmã o mandou sentar que ele deu a volta à mesa e sentou o rabinho na cadeira. Pegou imediatamente no guardanapo e -lo na cabeça. A irmã tirou-lho, abriu-o, e estendeu-lho no colo.
No momento em que lhes traziam o chá, a rapariga do coro apanhou-me a olhar para o grupo. Devolveu-me o olhar, com aqueles seus olhos escrutinadores. E depois, repentinamente, fez-me um pequeno sorriso, reservado. Era um sorriso estranhamente radioso, como certos pequenos sorrisos reservados o são por vezes. Devolvi o sorriso, muito menos radioso, mantendo o lábio superior a esconder uma obturação temporária de soldado raso, negra como o carvão, entre dois dos meus dentes da frente. Antes que desse por isso, a miúda estava em pé, com uma pose invejável, ao lado da minha mesa. Trazia um vestido escocês - o tartan dos Campbell, acho eu. A meu ver, um vestido magnífico para uma miúda tão nova usar num dia muito chuvoso. «Pensava que os Americanos desdenhavam o chá», disse ela."


Excerto do conto "Para Esmé - Com Amor e Sordidez", de J.D.Salinger, Trd. José Lima, ED. Difel, 2005

«Jerome David Salinger, el más íntimo de los escritores famosos contemporáneos, cumplió ayer 90 años. Es un autor escondido, pero genera una industria popular de fanáticos, críticos y comentadores, la Industria Salinger, de la que alguna vez habló George Steiner. Mítico desde la publicación de The Catcher in the Rye en 1951 (El guardián entre el centeno, 1978, traducción de Carmen Criado), ha demostrado la voluntad violenta de mantenerse a salvo del fervor público, hasta desaparecer en defensa de su vida privada. En tiempos de manía publicitaria, exhibicionista, J. D. Salinger ha eludido combativamente la intromisión espectacular de periódicos y televisiones. Ha pleiteado contra sus biógrafos. Ha sufrido las indiscreciones autobiográficas de mujeres que lo tuvieron cerca y han practicado con el escritor el género Kiss and tell, o "besa al famoso para después contarlo", incluso desde un punto de vista filial.»Justo Navarro, El País Online de 02/01/2009

Poema das árvores



As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
Poema de António Gedeão

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Antony & Lou Reed -" Candy Says "

«Mas, de repente, a Calle Nicaragua ergueu-se ao encontro dele.
O Cônsul estatelara-se de rosto para baixo e ao comprido na rua deserta.
«Hugh, és tu, meu velho, que me estás a estender a mão?Muito obrigado. Porque talvez seja agora, realmente, a tua vez de me dares uma ajuda. Não que eu tenha tido sempre o maior prazer em te auxiliar. Até daquela vez, em Paris, fiquei encantado quando tu vieste de Áden, para tratares do teu cartão de identidade e do teu passaporte, sem os quais preferes tantas vezes viajar e cujo número - ainda me lembro - era o 21312. Talvez me desse maior prazer porque então me distraía dos meus próprios assuntos, que andavam bastante embora alguns dos meus colegas duvidassem até nessa altura que assim sucedesse; julgavam-me tão divorciado da vida, que me tivesse tornado incapaz de cumprir semelhantes deveres por meio de despachos! Porque é que eu estou a dizer isto? É em parte para que tu compreendas que também eu reconheço quão perto estivemos - eu e a Yvonne - de soçobrar antes de nos encontrarmos. Claro que te perdoo, como, de qualquer maneira, nunca fui capaz de perdoar inteiramente a Yvonne, e que ainda consigo amar-te como irmão e respeitar-te como homem. De facto, desde que o Pai se embrenhou sozinho nos Alpes Brancos - embora se tratasse realmente dos Himalaias - para nunca mais regressar - e estes vulcões fazem-nos recordar mais vezes do que eu desejaria, tal como este vale me recorda o vale do Indo e essas velhas árvores de turbantes de folhas de Taxco me lembram Shrinagar e tal como Xochimilco - estás a ouvir, Hugh? - me evocou, quando aqui vim pela primeira vez, essas casas-barcos de Shalimar - tu já te não lembras disso - e a tua mãe e minha madrasta que morreu. Vêm-me à ideia todas essas coisas horríveis, que me aconteceram quase ao mesmo tempo, como se as leis da catástrofe tivessem chegado todas súbita mente de qualquer lado. A desgraça veio instalar-se em nossa casa com armas e bagagens. Desde então, poucas oportunidades tive de agir, por assim dizer, como irmão em relação a ti. Mas olha que talvez tenha actuado como pai, mas tu, nessa altura, eras ainda uma criancinha e ias enjoado no barco da P. and O - o velho e irregular Cocanada. A verdade é que depois disso, e uma vez de novo na Inglaterra, apareceram demasiados guardiões, demasiados substitutos em Harrogate, demasiados estabelecimentos e escolas, isto para não falar na guerra, no esforço que se realizou para a ganhar e que, conforme tu muito me dizes, ainda não terminou. E eu continuo com a garrafa e tu com as ideias que espero se verifiquem menos calamitosas para ti do que o foram as do nosso pai para ele próprio, ou as minhas para comigo. No entanto, tudo isto se pode admitir - ainda, neste ponto, Hugh, quererás tu estender-me a mão? Tenho de pôr em evidência e em termos definidos o seguinte: nunca sonhei, nem por um momento, que as coisas, tal como aconteceram, viessem realmente a verificar-se. Que eu tenha perdido o direito à confiança de Yvonne, não implica necessáriamente que ela perdesse o direito à minha. A verdade é que, a respeito de confiança, cada um de nós possui dela a sua concepção diferente. É que eu confiei em ti, é escusado dizer. Muito longe de mim o imaginar que tu tentarias justificar-te moralmente, estribando-te em que eu andava engolfado no deboche. Há também muitas outras razões, que só se poderão revelar no dia do Juízo Final, pelas quais tu não deverias ter-me julgado. Contudo, receio - estás a ouvir, Hugh? - que, muito antes desse dia, aquilo que tu fizeste impulsivamente e tentaste esquecer na cruel abstracção própria da mocidade, comece a impressionar-te sob uma nova e mais sombria luz. Tenho um medo aflitivo que tu possas, na verdade, precisamente, porque, no fundo, és uma criatura simples e boa e respeitas, mais genuinamente do que muitos outros, os princípios e o espírito de decência que o poderiam ter evitado, vir, por esse mesmo facto, a tornares-te presa, quando fores mais velho e a tua consciência menos forte, de um sofrimento mais abominável do que aquele que me tens causado. Como é que eu te poderei ajudar? Como é que o homem assassinado poderá convencer o assassino de que não o perseguirá? Ah, o passado corres mais depressa do nós julgamos, e Deus não tem grande paciência para aguardar que chegue a hora do remorso!»


Excerto de " Debaixo do Vulcão ", de Malcolm Lowry, Trd. Virgínia Motta, Ed. Livros do Brasil,Colecção Dois Mundos, p.p. 86 e 87

B-fachada -" Sto António (aos meninos) "

Ao vivo no Cinema Passos Manuel(14/06/2008)

No divã com o Engenheiro*

Terminado o debate sobre o Estado da Nação, o Engenheiro apeteceu-lhe duche e descanso, no Largo do Rato. O chefe do gabinete, porém, chamou-o ao dever: «A psicanálise, Senhor Primeiro-Ministro», avisou. O engenheiro encolheu os ombros, resignado, e encaminhou o BMW da função para um prédio com vista para Monsanto, andar de luxo. A tabuleta da porta do último andar-cobre brilhante sobre madeira de mogno - «massiva», como lhe chamaria o sibilante Carvalhas - dizia Paco Cabeza de Vaca/Sico-Analísis Política Interactiva.

«Buenas tardes», disse o Engenheiro, deitando-se no divã. Cabeza de Vaca pôs-se estrategicamente à cabeceira, fora do ângulo visual do Engenheiro.
«Republica das Bananas», disse o Engenheiro. «Sonho com isto todas as noites! É horrível!»

Cabeza De Vaca Não se pode antecipar nada, há que ver.

Engenheiro Estou aflito.

Cabeza De Vaca A ver, a ver! Diga-me, há nos altos cargos anglo-saxões ruivos, de olhos azuis e com sardas? É que nas repúblicas de bananas são raros!

Engenheiro Mas é que temos, é que temos!

Cabeza De Vaca Têm, por exemplo ministros ou autarcas que nem fazem a barba nem a deixam crescer?

Engenheiro Há um caso ou outro, com efeito.

Cabeza De Vaca Lista de espera em hospitais e consultas, alguma coisa?

Engenheiro Temos microfilmadas e em suporte informático.

Cabeza De Vaca Procuradores que procuram de menos e provedores que provêm demais?

Engenheiro Só dois casos!

Cabeza De Vaca E quanto à Justiça? É presta?

Engenheiro Não presta. Mas em compensação é lenta: tem de ser, para ser majestosa!

Cabeza De Vaca E há espionagem?

Engenheiro Temos pouco, porém as listas estão sempre actualizadas e patentes ao público. É a transparência.

Cabeza De Vaca Quanto a impostos?

Engenheiro Há os progressivos e os reaccionários, com predomínio destes últimos... Também há os directos e os indirectos, com predomínio igualmente deste último!

Cabeza De Vaca A educação suscita paixões fortes e avassaladoras?

Engenheiro Oh! Sim! Muito.

Cabeza De Vaca Tem ministros que subscrevem manifestos contra o seu próprio Ministério?

Engenheiro Há casos pontuais sem gravidade.

Cabeza De Vaca Há executivos americanos a gerir multinacionais aqui estabelecidas?

Engenheiro Pouquíssimos, apenas no Restelo, Lapa, Cascais, Quinta da Marinha, Sintra, em suma, só na faixa litoral.

Cabeza De Vaca Forças armadas?

Engenheiro Humanitárias, anti-violência. De resto, tesas!

Cabeza De Vaca Políticas de defesa nacional?

Engenheiro Murchas, em virtude da resposta anterior.

Cabeza De Vaca Obras de fachada?

Engenheiro Pouco, só o suficiente para manter alto o sentimento de auto-estima do povo.

Cabeza De Vaca Corrupção, suborno?

Engenheiro Nada, como dizia o Luís XIX, em 14 de Julho de 1789.

Cabeza De Vaca Ensino Universitário?

Engenheiro Resolvemos fazer uma opção: dar à iniciativa privada a sua oportunidade.

Cabeza De Vaca Banca e Seguros?

Engenheiro Resolvemos fazer uma opção: dar à iniciativa privada a sua oportunidade.

Cabeza De Vaca Socialismo?

Engenheiro Resolvemos fazer uma opção: dar à iniciativa privada a sua oportunidade.

Cabeza De Vaca Pode levantar-se, Dom António... A situação é séria, o prognóstico reservado.

Engenheiro Confirma, assim, o Síndroma de República das Bananas! Que fazer, Doutor?

Cabeza De Vaca Chegue-se a Dom Duarte Pio, Dom António, pode ser a salvação. As monarquias de bananas são raríssimas, praticamente nem existem!...


* António Serra Lopes, publicado no Independente, no inicio da década, e coligido no livro "Segunda Opinião Reprovações da Pátria", Ed. O Independente, 2004

Sonhos para 2009

« Soñé que en una fulgurante operación de Interpol se procedía al arresto de los Papás Noel apostados a la entrada de los grandes almacenes del mundo entero en cuanto sospechosos de genocidio y de limpieza étnica, como el disfrazado serbobosnio Karadzic, actualmente enchironado en su cómoda prisión neerlandesa.

Que la comunidad internacional incluía en la lista de terroristas más buscados del planeta a los crupieres de casino y trileros de Wall Street por un desplome de efectos más pavorosos que el derrumbe espectacular de las Torres Gemelas.


Que al finalizar su mandato, el actual inquilino de la Casa Blanca anunciaba su alistamiento voluntario como soldado raso para servir a la Patria en Irak, compensando así su travesura juvenil de eludir el servicio militar en Vietnam.», Sueños de Nochevieja para 2009, por Juan Goytisolo, El País Online,02/01/2009

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Rui Reininho & Silvia Machete -" Gente Aberta "

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A seita dos trinta

O manuscrito original pode ser consultado na Biblioteca de Leiden; está em latim mas helenismos vários justificam a conjectura de o terem traduzido do grego. Segundo Leisegang, data do século quarto da era cristã. De passagem Gibbon menciona-o numa das notas do capítulo décimo quinto do seu "Decline and Fall". Reza o autor anónimo:

...« A Seita nunca foi numerosa e já são raros os seus prosélitos. Dizimados pelo ferro e pelo fogo, dormem na berma dos caminhos ou nas ruínas que a guerra perdoou, já que vedado lhes é construir habitações. Costumam andar do conhecimento geral; proponho-me agora sua doutrina e s seus hábitos. Discuti com os mestres da Seita, demoradamente, e não consegui convertê-los à Fé do Senhor.

«Atraiu logo a minha atenção a diversidade dos pareceres que têm sobre os mortos. Julgam os mas incultos que os espíritos de quem deixou esta vida se encarregam de os enterrar; outros, que à letra se não agarram, que a repreensão de Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos condena a vaidade pomposa dos nossos ritos fúnebres.

«O conselho de vender o que temos, e dá-lo aos pobres, é rigorosamente acatado por todos; os primeiros beneficiados dão-no a outros, e estes a outros. Assim ficam suficientemente explicadas a inteligência e a nudez que os avizinha, também, do estado paradisíaco. Repetem com fervor estas palavras: Olhai os corvos, que não semeiam nem ceifam; que não têm celeiro nem guarda de celeiro, e Deus alimenta-os. Quanto mais valiosos não sois do que as aves? O texto prescreve a poupança: Se Deus veste a erva que existe hoje no campo, e amanhã é lançada ao forno, quanto mais vós, homens de pouca fé? Não procureis o que comer, o que beber; nem viveis em ansiosa perplexidade.

«O preceito: Quem olha uma mulher, para cobiçá-la, já com ela praticou o adultério no seu coração é um iniludível conselho de pureza. Muitos sectários, porém, afirmam que não existe homem debaixo dos céus isento desse olhar de cobiça deitado a uma mulher, e já todos praticámos, portanto, o adultério.

Como o desejo não é menos culposo do que o acto, podem os justos praticar sem risco o exercício da mais desbragada luxúria.

«A Seita evita as igrejas; os seus doutores pregam ao ar livre, de cima de um outeiro ou de um muro, às vezes de um barco em terra.

«O nome da Seita suscitou bem acesas conjecturas. Pretende uma delas que traduz o número a que os fiéis se reduziram, coisa irrisória mas profética pois a Seita, dada a perversa doutrina que perfilha, está predestinada a morrer. Outra fá-lo derivar da altura da arca, que era de trinta côvados;outra, falseando a astronomia, do número de noites que é a soma de cada mês lunar; outra do baptismo do Salvador; outra dos anos de Adão quando surgiu do pó vermelho. Todas são igualmente falsas. E não menos mentiroso é o catálogo de trinta divindades ou tronos, um deles Abraxas representando com cabeça de galo, braços e torso de homem, com um remate de serpente enroscada.

«Sei a Verdade mas não posso discorrer sobre a Verdade. O inapreciável dom de transmiti-la não me foi concedido. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale sermos executados do que matar-nos. Por isso vou limitar-me à exposição desta abominável heresia.

«O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens que iriam entregá-lo à cruz, e ser por Ele redimidos. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito, não só para pregar o amor como sofrer o martírio.

«Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. A morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta não bastava para ferir a imaginação dos homens até ao fim dos dias.

O Senhor preparou os factos de uma forma patética. Assim se explicam a última ceia, as palavras de Jesus que pressagiam a entrega, o repetido sinal a um dos discípulos, a benção do pão e do vinho, o suor parecido com sangue, as espadas, o beijo que atraiçoa, o Piltos que lava as mãos, a flagelação, o escárnio, os espinhos, a púrpura e o ceptro de caniço, o vinagre com fel, a Cruz no alto de uma colina, a promessa ao bom ladrão, a terra que treme e as trevas.

«A misericórdia divina, à qual tantas graças devo, permitiu-me descobrir a razão autêntica e secreta do nome da Seita. Em Kerioth, onde é verosímil que ela tenha nascido, perdura um conventículo alcunhado dos Trinta Dinheiros. Foi este o primitivo nome, que nos dá a chave. Na tragédia da Cruz - com a devida reverência o escrevo - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Foram involuntários os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que escolheu Barrabás, involuntário o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que levantaram a Cruz do Seu martírio e pregaram os cravos e jogaram aos dados. Voluntários só dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas, que eram preço da salvação das almas, e a seguir enforcou-se. Na altura tinha trinta e três anos como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.

«Não existe só um culpado; convicto ou não, ninguém há que não seja executor do plano que a Sabedoria traçou. Agora todos partilham a glória.

«A minha mão não resiste a escrever outra coisa abominável. Ao cumprir a idade assinalada, deixam os iniciados que escarneçam deles e os crucifiquem no alto de um monte para seguirem o exemplo dos seus mestres.

Esta criminosa violação do quinto mandamento deve ser reprimida com o rigor sempre exigido pelas leis humanas e divinas. Que as maldições do Firmamento, que o ódio dos anjos»...

Não se encontra o fim do manuscrito.

Conto de Jorge Luís Borges, incluído no livro "O Livro de Areia", Trd. Aníbal Fernandes, Ed. Livro B, Editorial Estampa

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