Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

«Mas, de repente, a Calle Nicaragua ergueu-se ao encontro dele.
O Cônsul estatelara-se de rosto para baixo e ao comprido na rua deserta.
«Hugh, és tu, meu velho, que me estás a estender a mão?Muito obrigado. Porque talvez seja agora, realmente, a tua vez de me dares uma ajuda. Não que eu tenha tido sempre o maior prazer em te auxiliar. Até daquela vez, em Paris, fiquei encantado quando tu vieste de Áden, para tratares do teu cartão de identidade e do teu passaporte, sem os quais preferes tantas vezes viajar e cujo número - ainda me lembro - era o 21312. Talvez me desse maior prazer porque então me distraía dos meus próprios assuntos, que andavam bastante embora alguns dos meus colegas duvidassem até nessa altura que assim sucedesse; julgavam-me tão divorciado da vida, que me tivesse tornado incapaz de cumprir semelhantes deveres por meio de despachos! Porque é que eu estou a dizer isto? É em parte para que tu compreendas que também eu reconheço quão perto estivemos - eu e a Yvonne - de soçobrar antes de nos encontrarmos. Claro que te perdoo, como, de qualquer maneira, nunca fui capaz de perdoar inteiramente a Yvonne, e que ainda consigo amar-te como irmão e respeitar-te como homem. De facto, desde que o Pai se embrenhou sozinho nos Alpes Brancos - embora se tratasse realmente dos Himalaias - para nunca mais regressar - e estes vulcões fazem-nos recordar mais vezes do que eu desejaria, tal como este vale me recorda o vale do Indo e essas velhas árvores de turbantes de folhas de Taxco me lembram Shrinagar e tal como Xochimilco - estás a ouvir, Hugh? - me evocou, quando aqui vim pela primeira vez, essas casas-barcos de Shalimar - tu já te não lembras disso - e a tua mãe e minha madrasta que morreu. Vêm-me à ideia todas essas coisas horríveis, que me aconteceram quase ao mesmo tempo, como se as leis da catástrofe tivessem chegado todas súbita mente de qualquer lado. A desgraça veio instalar-se em nossa casa com armas e bagagens. Desde então, poucas oportunidades tive de agir, por assim dizer, como irmão em relação a ti. Mas olha que talvez tenha actuado como pai, mas tu, nessa altura, eras ainda uma criancinha e ias enjoado no barco da P. and O - o velho e irregular Cocanada. A verdade é que depois disso, e uma vez de novo na Inglaterra, apareceram demasiados guardiões, demasiados substitutos em Harrogate, demasiados estabelecimentos e escolas, isto para não falar na guerra, no esforço que se realizou para a ganhar e que, conforme tu muito me dizes, ainda não terminou. E eu continuo com a garrafa e tu com as ideias que espero se verifiquem menos calamitosas para ti do que o foram as do nosso pai para ele próprio, ou as minhas para comigo. No entanto, tudo isto se pode admitir - ainda, neste ponto, Hugh, quererás tu estender-me a mão? Tenho de pôr em evidência e em termos definidos o seguinte: nunca sonhei, nem por um momento, que as coisas, tal como aconteceram, viessem realmente a verificar-se. Que eu tenha perdido o direito à confiança de Yvonne, não implica necessáriamente que ela perdesse o direito à minha. A verdade é que, a respeito de confiança, cada um de nós possui dela a sua concepção diferente. É que eu confiei em ti, é escusado dizer. Muito longe de mim o imaginar que tu tentarias justificar-te moralmente, estribando-te em que eu andava engolfado no deboche. Há também muitas outras razões, que só se poderão revelar no dia do Juízo Final, pelas quais tu não deverias ter-me julgado. Contudo, receio - estás a ouvir, Hugh? - que, muito antes desse dia, aquilo que tu fizeste impulsivamente e tentaste esquecer na cruel abstracção própria da mocidade, comece a impressionar-te sob uma nova e mais sombria luz. Tenho um medo aflitivo que tu possas, na verdade, precisamente, porque, no fundo, és uma criatura simples e boa e respeitas, mais genuinamente do que muitos outros, os princípios e o espírito de decência que o poderiam ter evitado, vir, por esse mesmo facto, a tornares-te presa, quando fores mais velho e a tua consciência menos forte, de um sofrimento mais abominável do que aquele que me tens causado. Como é que eu te poderei ajudar? Como é que o homem assassinado poderá convencer o assassino de que não o perseguirá? Ah, o passado corres mais depressa do nós julgamos, e Deus não tem grande paciência para aguardar que chegue a hora do remorso!»


Excerto de " Debaixo do Vulcão ", de Malcolm Lowry, Trd. Virgínia Motta, Ed. Livros do Brasil,Colecção Dois Mundos, p.p. 86 e 87

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