Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sábado, 31 de janeiro de 2009

Castelo da Feira

Fotografia de Jorge Orfão

« A vida tem sido amarga para mim. Mas, enfim, eu sonhei usar óculos, e uso-os; sonhei ter botas altas, e pude arranjá-las, quando estive na tropa; sonhei ter carta de condução, e tirei-a nessa altura; sonhei - ó sempre Capitão Morgan e meu pai, capitão de navios em que eu navegava da Rocha do Conde de Óbidos a Santa Apolónia! - navegar de longo curso às Áfricas e aos Brasis, e, sabe Deus como, naveguei; sonhei visitar o Castelo da Feira, aquelas torres, aquele eirado dos retratos, e visitei-o sozinho, fechado à chave pelo guarda, que é como aquilo gostosamente se visita.»

Excerto do artigo " Castelos e outros objectos de influência ", de Jorge de Sena, publicado no Jornal de Letras, Nrº 1000

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Frase do dia(1)

« Sei que o homem teve o azar de nascer num País em que um indivíduo acorda chefe do Governo para seu próprio espanto, o que o impede de evitar ou retocar um passado no mínimo trapalhão. E sei que teve a sorte de nascer em Portugal, onde as tão discutidas trapalhadas não significam nada em última instância e geralmente nem chegam à primeira.»

Alberto Gonçalves, Revista Sábado, 29/01/2009

O disco

Sou lenhador. O nome não importa. A cabana onde nasci e em breve hei-de morrer fica na orla do bosque. O bosque, ao que dizem, estende-se até ao mar que rodeia a terra e por ele fora existem casas de madeira iguais à minha. Não sei; nunca as vi. Nem mesmo o outro lado do bosque. Quando éramos pequenos, o meu irmão mais velho fez-me jurar que arrasaríamos ambos o bosque inteiro, até não restar uma só árvore. O meu irmão morreu e agora procuro e continuo a procurar uma coisa diferente. Corre para oeste um riacho onde sei pescar à mão. No bosque há lobos mas não me atemorizam, os lobos, e o meu machado nunca me foi infiel. Perdi a conta aos anos que tenho. Sei que são muitos. Os meus olhos já não vêem. Na aldeia, aonde agora não vou porque havia de perder-me, tenho fama de avarento. Mas o que pode ter amealhado um lenhador?
A porta da minha casa fecho-a com uma pedra para a neve não entrar. Uma tarde ouvi passos cautelosos e logo a seguir uma pancada. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída. Cruzava-lhe a cara uma cicatriz. Os anos pareciam ter-lhe dado mais autoridade do que fraqueza, mas reparei que sentia dificuldade em andar sem o apoio do bordão. Trocámos palavras de que não guardo já nenhuma ideia. Por fim, disse:
- Não tenho lar e durmo onde calha. Já corri toda a Saxónia.
Convinham à sua velhice tais palavras. O meu pai falava muito da Saxónia; agora as pessoas dizem Inglaterra.
Eu tinha pão e peixe. Durante o jantar não falámos. Começou a chover. No chão de terra instalei-lhe a enxerga com umas peles onde o meu irmão tinha morrido. Ao cair da noite adormecemos.
Quando chegou o dia, saímos de casa. A chuva terminara e a terra estava coberta de neve recente. Caiu-lhe o bordão e ordenou-me que o apanhasse.
- Por que hei-de obedecer-te? - disse eu.
Julguei-o louco. Apanhei o bordão e entreguei-lho.
Falou com uma voz muito nítida.
- Sou rei dos Secgens. Em duras batalhas conduzi-os à vitória, muitos vezes, mas quando soou a hora do destino perdi o meu reino. Chamo-me Isern e sou da estirpe de Odin.
- Não venero Odin - respondi. - Venero Cristo.
Como se não me tivesse ouvido, continuou:
- Ando pelos caminhos do desterro, mas sou o rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?
Abriu a palma da mão que era ossuda. Nada tinha dentro. Estava vazia. E só então reparei que a conservara sempre fechada.
Olhou-me fixamente, e disse:
- Podes tocar-lhe.
Já um pouco receoso, na palma da mão pus-lhe a ponta dos meus dedos. Senti uma coisa fria e vi um brilho qualquer. Depois a mão fechou-se, de repente. Eu nada disse e o outro continuou cheio de paciência, como se estivesse a falar com uma criança.
- É de ouro? - perguntei.
- Não sei. É o disco de Odin e só tem um lado.
Cobicei aquele disco, então. se fosse meu poderia vendê-lo por uma barra de ouro e ser rei.
Disse-o àquele vagabundo, que ainda hoje odeio:
- Na cabana tenho escondida uma caixa de moedas. São de ouro e brilham tanto como este machado. Se me deres o disco, dou-te a caixa.
Respondeu teimosamente:
- Não quero.
- Então podes continuar o teu caminho - disse eu.
Voltou-me as costas. Uma só machadada na nuca chegou e sobrou para ele vacilar e cair, mas quando o fez abriu a mão e vi um brilho pelo ar. Com o machado marquei bem aquele sítio e arrastei o morto até um ribeiro que corria, muito alto. Uma vez lá, atirei-o à água.
De volta para casa procurei o disco e não o encontrei. Há anos que o procuro.

Conto de Jorge Luís Borges, incluído em " O Livro de Areia ", Trd. Aníbal Fernandes, Editorial Estampa, Colecção Livro-B, 1975

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Mulheres afegãs


O lugar do gelo

Uma ocasião, Marina Mota, a jovem mulher do Zeca da Carris, acordou sobressaltada de noite, com um berro na casa. Era o marido que andava lá para dentro e que lhe dera para gritar, como se tivesse visto uma aventesma. Marina soergueu-se, abriu a luz. Aventesma não havia, era antes o Zeca que se tinha queimado, provavelmente na cozinha, onde costumava esgueirar-se pelas madrugadas para ir ao armário das comidas.
- Ai - explicitou o Zeca em novo grito - ai que me queimei! - E seguiam-se imprecações, em fiada, indignas de impressão.
Num credo, estava Marina ao lado do Zeca, na sala de estar, presenciando a estranha dança que ele desempenhava, muito dobrado, os pés muito juntos, a mão entre as coxas resguardada.
- Que é que foi, homem, que é que te deu? - perguntou a Marina, como lhe convinha.
- Foi que me queimei na puta da máquina de costura, é o que foi - respondeu de lá o Zeca agastado, continuando naqueles pulinhos miúdos que até faziam desandar o soalho.
Em pouco estavam os pais do Zeca, que dormiam no outro quarto, a observar aquele preparo todo de dentro dos pijamas, com a mãe a benzer-se e o pai a fazer gestos de apelo à calma.
- Mas quê? - avançou o pai. - Há fogo? Tá alguma coisa a arder?
- Ó senhor - disse o Zeca. - Abram mas é a luz e venham cá ver.
Tinha metido a mão debaixo do sovaco do outro braço e olhava com um ar suspeitoso para a máquina de costura.
A Marina observou que não lhe cheirava a esturro e, mais afoita, estendeu a mão para a máquina. Era um aparelho de segunda mão, em muito bom estado, entregue na véspera, que estava ali, junto à janela, para ajudar ao rendimento do casal.
- Cuidado com isso! - gritou o Zeca.
- É preciso é calmaria - respondeu o pai, que seguia interessado o movimento da nora, satisfeito por se saber dispensado de tomar a iniciativa e o risco.
Mas aí a um palmo da máquina, Marina retirou a mão, num sobressalto:
- Irra, tá frio.
E todos repararam que, à luz eléctrica, a máquina rebrilhava como se coberta de pequenos flocos brancos, luzentes.
- Tá frio o caraças... - disse de lá o Zeca. - Então como é que eu me queimei?
A mãe dizia: - Ai que coisa mais escanifobética! - e o pai, devagarinho, foi estendendo também a mão, que logo sacudiu num movimento brusco.
- Tá frio, pois - exclamou, exibindo os dedos arroxeados nas pontas. - Tá um frio que até trespassa!
Bateram à porta: eram vizinhos, a saber se havia azar...
Que não havia, mas que o espaço em volta da máquina de costura estava frio como o camandro.
Todos foram experimentar, dedo aqui, mão acolá, pé por baixo, queixo por cima. O próprio Zeca passou ao de leve o indicador da outra mão pela área suspeita.
- Tem graça, agora deu-me o frio, mas há bocado queimei-me mesmo.
Mas o vizinho de baixo, que tinha um irmão emigrado no Canadá, explicou logo o fenómeno, numa voz muito pausada: o amigo Zeca tinha-se queimado porque o frio também queima.O irmão dele, uma vez lá em Dawson tinha apoiado uma mão ao guarda lamas de um tractor e quase lá ia deixando a pela, tal a ferroada da queimadura.
E isso acontecia quando a temperatura estava muitos graus abaixo de zero.
- Mas se isto é um país de clima temperado... - queixava-se o Zeca - ainda mais temperada havia de ser a minha casa, ou não é verdade?
O miúdo, entretanto, tinha-se insinuado por debaixo das pernas de todos e chegado à zona da máquina de costura.
Logo rompeu num berreiro alto e dasaustinado agitando os dedos num frenesi: - Pica - gritava - pica...
A mãe subiu-o ao colo e chegou-lhe o bafo à mão.
Mas o Zeca já recobrara o sangue frio e dirigia agora ponderadas operações. Empoleirado numa cadeira, o vizinho estendia vagarasomente os braços por cima da máquina de costura:
- Pronto, agora mais abaixo - comandava o Zeca.
O vizinho teve um rebate: - Olhe - disse - começa aqui mesmo o frio, por esta altura - e passava a mão por um plano distante do tecto cerca de um metro - Daqui para cima está normal, para baixo é que há frio.
E, lembrado das coisas do Canadá perguntou ao Zeca:
- Ó Zeca, vocês deixam-me fazer uma experiência? Não levam a mal, hã?
Alçou o queixo, remoeu qualquer coisa na boca, ruidosamente, e cuspinhou com força para a máquina de costura.
O cuspo descreveu um arco rápido, mas ao chegar à zona do frio estalou no ar e desfez-se em pequenos grãos de saraiva que embateram com estrondo contra a máquina - Taclac-lactac.
Breve havia muita gente a cuspir e o chão em volta estava pontilhado de pedaços de granizo:
- Vamos lá a parar com cuspinheira qu´isto aqui não é a aldeia dos macacos - comandou o pai do Zeca.
Mas já por então estava delimitada a zona de frio: era um paralelepípedo com cerca de um metro e meio de frente por oitenta centímetros de largura e dois metros de altura.
Corpo que avançasse para além, era traçado pelo griso.
- Traz lá o jarro da água - disse para a Marina - mas cheio, hã?
Veio o jarro, meio cheio, que a Marina antevia águas derramadas, e o Zeca atou-lhe uma guita à asa. Todos ficaram a vê-lo subir para uma cadeira e a desenrolar o fio muito de mansinho, até que o jarro entrou na zona crítica.
- Plak klak - rachou-se o jarro, por todo o lado. Os cacos de vidro espalharam-se por cima da máquina de costura, com excepção da asa que ficou presa à guita. E um grande bloco de gelo rebolou sonoro pelo tampo da máquina e veio quebrar-se no lajedo do chão.
- Tudo gela instantaneamente - comentou o vizinho. - Gela o cuspo, gela a água... Que bonito par de botas vocês arranjaram...
E toda a gente estava embasbacada com aquilo.
- O que me rala - comentou o Zeca - é não saber se isto é da máquina ou se é do sítio. Ora arredem-se para lá.
E entrou no quarto de dormir, donde regressava momentos depois, muito inchado de casacos, sobretudos, luvas e cachecóis e com a cara envolta por duas toalhas das grandes.
Todos riram de o ver naquele preparo, a que não faltava uma estola da Marina a envolver-lhe a nuca.
- Lá a calari que o homem tá a trabalhar - ordenou o Trindade.
O Zeca então, praguejando, chegou-se à máquina e puxou-a com força. Todos lhe viam o vapor da respiração que parecia uma fumarada de comboio velho. Mas o Zeca deu um grande impulso à máquina e o grupo afastou-se, num salto, para não ser tocado pelo frio.
A máquina estava agora no meio da sala e o Zeca entre os outros. Uma fina camada de gelo cobria-lhe as sobrancelhas, as pestanas e a ponta das patilhas. Esfregava as mãos uma na outra que nem um desalmado.
- Safa, que ia morrendo gelado. Mas não há dúvida, o frio vem desta engenhoca.
- É - comentou o vizinho de baixo, hóspede de D. Constança,que se passeava impunemente, em pijama, pelo sítio em que, antes, junto à parede, estivera pousada a máquina e agarrava agora o bloco de gelo que começava a derreter - em volta da máquina é que faz frio... O amigo Zeca tem de decidir, tem de escolher onde é que lhe faz menos diferença o frio.
- Então fica onde estava - respondeu o Zeca, limpando os beiços à mão, depois de emborcada uma «amarelinha» que a mãe lhe trouxe, para aquecer.
- Vamos a isto? - disse - e reentrou na zona do frio, empurrando de novo a máquina contra a parede, com grande estridor de ferragens deslocadas.
Logo saltou para fora, com os beiços roxos, cheio de poalha branca na cara e reclamou um aquecedor. Ligaram um radiador eléctrico. O Zeca despiu-se, devagar, daquelas roupagens todas, e, por fim, disse para todos:
- Bom, o espectáculo que havia a ver já tá visto. Agora agradecia que me desamparassem a loja que amanhã é dia de trabalho.
Todos foram saindo, resmungando, contrariados. O Zeca ainda pensava em procurar no dia seguinte o vendedor da máquina de costura e pedir-lhe contas. Mas a Marina dissuadiu-o:
- Nem pensar em tal semelhante - arengou muito espevitada e de mão na cara. - Então não vês que isto nos dispensa de comprar o frigorífico? É o melhor congelador que há, homem... Até podemos alugar espaço à vizinhança para guardarem as coisas deles.
Não era mal pensado e assim se fez, porque comprometer a utilidade com a estranheza é ainda mais parvo que confundir género humano com Manuel Germano.


Conto de Mário de Carvalho, incluído no livro " casos do Beco das Sardinhas ", Ed. Contra Regra,1982

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Marcelo Camelo - "Téo e a gaivota"

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Brahms: Sinfonia Nrº 4, 4º andamento: Allegro energico e passionato.

Orquestra da Bavária, dirigida por Carlos Kleiber

Bloc Party ao vivo

This Modern Love


Sunday


I Still Remember

Andrew Bird

«Toda a gente pode fazer isto: pesquise num computador "Andrew Bird" + "From the Basement", que é o nome de um programa britânico que grava actuações de músicos numa cave. O clip pretendido dura quase nove minutos. Sugiro que reserve dez minutos do seu dia. Reserve vinte, porque pode querer ver duas vezes.» Artigo e entrevista de Rui Tavares para a Ípsilon de 23/01/2009.

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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