Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O disco

Sou lenhador. O nome não importa. A cabana onde nasci e em breve hei-de morrer fica na orla do bosque. O bosque, ao que dizem, estende-se até ao mar que rodeia a terra e por ele fora existem casas de madeira iguais à minha. Não sei; nunca as vi. Nem mesmo o outro lado do bosque. Quando éramos pequenos, o meu irmão mais velho fez-me jurar que arrasaríamos ambos o bosque inteiro, até não restar uma só árvore. O meu irmão morreu e agora procuro e continuo a procurar uma coisa diferente. Corre para oeste um riacho onde sei pescar à mão. No bosque há lobos mas não me atemorizam, os lobos, e o meu machado nunca me foi infiel. Perdi a conta aos anos que tenho. Sei que são muitos. Os meus olhos já não vêem. Na aldeia, aonde agora não vou porque havia de perder-me, tenho fama de avarento. Mas o que pode ter amealhado um lenhador?
A porta da minha casa fecho-a com uma pedra para a neve não entrar. Uma tarde ouvi passos cautelosos e logo a seguir uma pancada. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída. Cruzava-lhe a cara uma cicatriz. Os anos pareciam ter-lhe dado mais autoridade do que fraqueza, mas reparei que sentia dificuldade em andar sem o apoio do bordão. Trocámos palavras de que não guardo já nenhuma ideia. Por fim, disse:
- Não tenho lar e durmo onde calha. Já corri toda a Saxónia.
Convinham à sua velhice tais palavras. O meu pai falava muito da Saxónia; agora as pessoas dizem Inglaterra.
Eu tinha pão e peixe. Durante o jantar não falámos. Começou a chover. No chão de terra instalei-lhe a enxerga com umas peles onde o meu irmão tinha morrido. Ao cair da noite adormecemos.
Quando chegou o dia, saímos de casa. A chuva terminara e a terra estava coberta de neve recente. Caiu-lhe o bordão e ordenou-me que o apanhasse.
- Por que hei-de obedecer-te? - disse eu.
Julguei-o louco. Apanhei o bordão e entreguei-lho.
Falou com uma voz muito nítida.
- Sou rei dos Secgens. Em duras batalhas conduzi-os à vitória, muitos vezes, mas quando soou a hora do destino perdi o meu reino. Chamo-me Isern e sou da estirpe de Odin.
- Não venero Odin - respondi. - Venero Cristo.
Como se não me tivesse ouvido, continuou:
- Ando pelos caminhos do desterro, mas sou o rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?
Abriu a palma da mão que era ossuda. Nada tinha dentro. Estava vazia. E só então reparei que a conservara sempre fechada.
Olhou-me fixamente, e disse:
- Podes tocar-lhe.
Já um pouco receoso, na palma da mão pus-lhe a ponta dos meus dedos. Senti uma coisa fria e vi um brilho qualquer. Depois a mão fechou-se, de repente. Eu nada disse e o outro continuou cheio de paciência, como se estivesse a falar com uma criança.
- É de ouro? - perguntei.
- Não sei. É o disco de Odin e só tem um lado.
Cobicei aquele disco, então. se fosse meu poderia vendê-lo por uma barra de ouro e ser rei.
Disse-o àquele vagabundo, que ainda hoje odeio:
- Na cabana tenho escondida uma caixa de moedas. São de ouro e brilham tanto como este machado. Se me deres o disco, dou-te a caixa.
Respondeu teimosamente:
- Não quero.
- Então podes continuar o teu caminho - disse eu.
Voltou-me as costas. Uma só machadada na nuca chegou e sobrou para ele vacilar e cair, mas quando o fez abriu a mão e vi um brilho pelo ar. Com o machado marquei bem aquele sítio e arrastei o morto até um ribeiro que corria, muito alto. Uma vez lá, atirei-o à água.
De volta para casa procurei o disco e não o encontrei. Há anos que o procuro.

Conto de Jorge Luís Borges, incluído em " O Livro de Areia ", Trd. Aníbal Fernandes, Editorial Estampa, Colecção Livro-B, 1975

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