Êxtase para continuar a se sentir vivo
Roth, que não se cansa de experimentar com próprio estilo, retorna à oposição entre corpo e intelecto
por Nadine Gordimer
Homem comum, Philip Roth, trad. Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, no prelo
Para três dos maiores romancistas do mundo, Carlos Fuentes, García Márquez e Philip Roth, a violenta irrupção do desejo sexual na velhice é a resistência do homem à morte. É a sacudida final da próstata, diria meu velho amigo médico.Mas o tema não pode ser resumido dessa forma perversa, não quando é abordado na ficção contemporânea desses escritores das duas Américas. Memórias de minhas putas tristes, de García Márquez, Inez, de Fuentes, e A marca humana, Animal agonizante e, agora, Homem comum, de Roth, têm em comum o fenômeno do desejo sexual tardio, apresentado como semelhante ao da adolescência. Quando “pensar é se encher de tristeza”, o último pedido de exuberância é ver o corpo lentamente desnudado; surge então a dúvida sobre a suposta superioridade das recompensas do intelecto. Em Animal agonizante, David Kepesh afirma que o fenômeno é a inegável afirmação do “patrimônio erótico”, e o mesmo vale para Homem comum, o novo protagonista sem nome (talvez porque seja o próprio autor) de Philip Roth.A história começa quando ele está morto. Mas o reconhecemos imediatamente: exerce uma profissão cultural (ainda que duvidosa) e gosta de passar o tempo pintando; foi casado várias vezes; tem filhos com os quais não se relaciona. É o homem que Roth escolheu, há muito tempo, para suportar o fardo humano, como qualquer escritor seleciona determinados tipos. Antes de morrer, esse jornalista cultural sepultado morou em uma cidade distante durante vários anos. Os parentes, entre os quais uma ex-esposa, estão no túmulo ao lado. Sua filha mais querida, Nancy, decidiu enterrá-lo em um cemitério judeu semi-abandonado, embora soubesse que o pai era ateu: ele amava os pais e ficaria assim perto deles.Roth exerce o direito de praticar diversos modos literários, mas não se cansa de experimentar com o próprio estilo. Do túmulo o homem é trazido de volta à vida e para um período anterior à sua concepção. Aqui, a cronologia da vida não é a do calendário, mas a das referências cruzadas; logo estaremos em um túmulo ainda mais antigo. Após a recriação da infância do jornalista cultural enquanto espera por uma das “intervenções médicas” que manterão seu corpo geriátrico, ele retorna ao dia do funeral de seu pai. É o mesmo cemitério judeu fundado por imigrantes. A joalheria do pai está viva em sua mente. Aberta em 1933, o negócio sugere bem a audácia dos imigrantes: “Diamantes, Jóias, Relógios”. Para que o nome judeu não “afugentasse ou assustasse os milhares de cristãos, ele estendeu o crédito livremente e nunca quebrou por isso: o benefício gerado por sua flexibilidade compensou”. Um bom homem, reconhece o filho.
Talvez somente em uma vida com certas limitações seja possível ser bom. A questão é intrigante e cabe ao leitor refletir lendo os escritos de Roth. A razão para se arriscar a abrir um negócio em plena depressão “era simples”: Ele “tinha de deixar algo aos dois meninos”. No contexto de Roth, não se trata de algo sentimental, mas de um princípio implícito de sobrevivência com conotações que levam o leitor à interminável presença dos imigrantes, geração após geração, de país a país, judeus, irlandeses, muçulmanos, sem outras raízes além do superficial vínculo estabelecido com o solo natal dos outros.Se a amplitude descritiva declinou no final do século XIX, Philip Roth, que percorre as épocas e os territórios do mundo, ressuscitou-a na descrição investida com o poder da narrativa. O túmulo do pai é – para o leitor sagaz, não para o filho – uma experiência pós-premonitória, cujo propósito é o retorno à sepultura em que Roth inicia a vida do filho, estabelecendo um vínculo entre este e seus antepassados. Nunca antes ele vira o ritual ortodoxo judeu, em que os parentes e não os funcionários do cemitério enterram o caixão. O que ele vê não é um punhado de pó simbólico sendo jogado, mas parentes e amigos erguendo pás de terra para cobrir o caixão. Imerso “na brutal retidão do enterro”, ele não experimenta reverência, mas horror. Repentinamente, “ele vê a boca de seu pai como se não houvesse caixão, como se a sujeira lançada na cova estivesse se depositando diretamente sobre ele, enchendo sua boca, cegando seus olhos, entupindo suas narinas e fechando seus ouvidos. (…) Ele ainda podia sentir a sujeira revestindo sua boca bem depois de deixar o cemitério e retornar a Nova York”. É o gosto da morte.“Professor do Desejo”: seria possível dar esse epíteto, título de um de seus primeiros romances, ao escritor Philip Roth, sem desrespeito e com admiração. Com o domínio e a integridade de sua escrita, Roth provou a diferença entre o erótico e o pornográfico, em uma época marcada pelo último. A premissa de sua obra é que nada que o corpo oferece deve ser rejeitado, desde que não cause dor. Com maravilhosa presunção ele parece ter escrito o Kama Sutra dos séculos XX e XXI. Ele afirma a alegria do intercurso sexual e a esplêndida habilidade do corpo.Se Portnoy nunca cresceu, apenas se tornou mais velho, ele é, em sua posição atual, um homem comum cujo criador faz do termo “insight” algo a ser deixado de lado por inadequado. O que Roth sabe da oposição/aposição entre corpo e intelecto é profundo e não pode ser ignorado, assim como o grafite de Thomas Mann na parede do século XX não pode ser apagado: “Em nossa época o destino do homem apresenta seu significado em termos políticos”. Roth aborda esse outro grande tema do impulso existencial humano – a política – com a mesma perspicácia com que trata da sexualidade. Os personagens de Roth, ativistas políticos ou não, vivem em nosso mundo – e o decoro da academia é seu microcosmo togado – aterrorizado pelo medo do Outro estrangeiro e pelo autoritarismo de Estado em nossa casa. Em seu soberbo e incomparável livro Complô contra a América, ele insere o passado no presente. A veneração por Charles Lindbergh torna plausível sua ascensão à presidência dos Estados Unidos, apesar da admiração por Hitler. Bush nunca elogiou os nazistas, mas não é nenhuma fantasia o entusiasmo que desperta, por meio do medo, nos americanos que votaram nele, americanos cujos filhos retornam mortos da guerra e que assistem as terríveis imagens de iraquianos mortos. O anti-semitismo de Lindbergh prenuncia os fundamentalismos que hoje nos acossam.
Saímos de Homem comum com a verdade clara de que a subserviência, conotações sexuais à parte, é uma traição à responsabilidade humana. A resistência é mais profunda em nós do que o impulso para a liberdade. Em Homem comum, a experiência sensual invoca a glória de estar vivo, mesmo que “se esquivar da morte se torne a preocupação central da vida e a decadência do corpo sua história”. Philip Roth é um magnífico vitorioso na tentativa de refutar a afirmação de George Lukács de que seria impossível o an¬seio do escritor de abarcar a vida inteira.
Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Arquivo do blogue
-
►
2016
(1)
- ► 02/21 - 02/28 (1)
-
►
2011
(34)
- ► 07/03 - 07/10 (1)
- ► 06/12 - 06/19 (14)
- ► 05/29 - 06/05 (1)
- ► 05/22 - 05/29 (3)
- ► 05/15 - 05/22 (15)
-
►
2010
(26)
- ► 10/03 - 10/10 (6)
- ► 01/31 - 02/07 (3)
- ► 01/24 - 01/31 (6)
- ► 01/17 - 01/24 (4)
- ► 01/10 - 01/17 (1)
- ► 01/03 - 01/10 (6)
-
►
2009
(588)
- ► 12/27 - 01/03 (8)
- ► 12/20 - 12/27 (4)
- ► 12/13 - 12/20 (4)
- ► 12/06 - 12/13 (3)
- ► 11/29 - 12/06 (8)
- ► 11/22 - 11/29 (8)
- ► 11/15 - 11/22 (14)
- ► 11/08 - 11/15 (6)
- ► 11/01 - 11/08 (4)
- ► 10/25 - 11/01 (13)
- ► 10/18 - 10/25 (9)
- ► 10/11 - 10/18 (9)
- ► 10/04 - 10/11 (7)
- ► 09/27 - 10/04 (9)
- ► 09/20 - 09/27 (2)
- ► 09/13 - 09/20 (3)
- ► 09/06 - 09/13 (4)
- ► 08/30 - 09/06 (4)
- ► 08/23 - 08/30 (4)
- ► 08/16 - 08/23 (14)
- ► 08/09 - 08/16 (12)
- ► 08/02 - 08/09 (13)
- ► 07/26 - 08/02 (5)
- ► 07/19 - 07/26 (8)
- ► 07/12 - 07/19 (4)
- ► 07/05 - 07/12 (3)
- ► 06/28 - 07/05 (3)
- ► 06/21 - 06/28 (2)
- ► 06/14 - 06/21 (1)
- ► 06/07 - 06/14 (14)
- ► 05/31 - 06/07 (15)
- ► 05/24 - 05/31 (15)
- ► 05/17 - 05/24 (9)
- ► 05/10 - 05/17 (14)
- ► 05/03 - 05/10 (14)
- ► 04/26 - 05/03 (6)
- ► 04/19 - 04/26 (16)
- ► 04/12 - 04/19 (12)
- ► 04/05 - 04/12 (9)
- ► 03/29 - 04/05 (6)
- ► 03/22 - 03/29 (9)
- ► 03/15 - 03/22 (19)
- ► 03/08 - 03/15 (21)
- ► 03/01 - 03/08 (34)
- ► 02/22 - 03/01 (28)
- ► 02/15 - 02/22 (19)
- ► 02/08 - 02/15 (16)
- ► 02/01 - 02/08 (27)
- ► 01/25 - 02/01 (14)
- ► 01/18 - 01/25 (36)
- ► 01/11 - 01/18 (21)
- ► 01/04 - 01/11 (26)
-
►
2008
(805)
- ► 12/28 - 01/04 (15)
- ► 12/21 - 12/28 (6)
- ► 12/14 - 12/21 (17)
- ► 12/07 - 12/14 (33)
- ► 11/30 - 12/07 (17)
- ► 11/23 - 11/30 (20)
- ► 11/16 - 11/23 (18)
- ► 11/09 - 11/16 (30)
- ► 11/02 - 11/09 (29)
- ► 10/26 - 11/02 (17)
- ► 10/19 - 10/26 (21)
- ► 10/12 - 10/19 (24)
- ► 10/05 - 10/12 (30)
- ► 09/28 - 10/05 (39)
- ► 09/21 - 09/28 (14)
- ► 09/14 - 09/21 (23)
- ► 09/07 - 09/14 (24)
- ► 08/31 - 09/07 (39)
- ► 08/24 - 08/31 (11)
- ► 08/10 - 08/17 (22)
- ► 08/03 - 08/10 (24)
- ► 07/27 - 08/03 (26)
- ► 07/20 - 07/27 (15)
- ► 07/13 - 07/20 (27)
- ► 07/06 - 07/13 (28)
- ► 06/29 - 07/06 (29)
- ► 06/22 - 06/29 (11)
- ► 06/15 - 06/22 (20)
- ► 06/08 - 06/15 (31)
- ► 06/01 - 06/08 (27)
- ► 05/25 - 06/01 (6)
- ► 05/18 - 05/25 (3)
- ► 05/11 - 05/18 (12)
- ► 05/04 - 05/11 (1)
- ► 04/27 - 05/04 (1)
- ► 04/20 - 04/27 (2)
- ► 03/23 - 03/30 (5)
- ► 03/16 - 03/23 (20)
- ► 03/09 - 03/16 (10)
- ► 03/02 - 03/09 (13)
- ► 02/24 - 03/02 (14)
- ► 02/17 - 02/24 (14)
- ► 02/10 - 02/17 (5)
- ► 02/03 - 02/10 (8)
- ► 01/20 - 01/27 (3)
- ► 01/06 - 01/13 (1)
-
▼
2007
(667)
- ► 12/30 - 01/06 (7)
- ► 12/23 - 12/30 (9)
- ► 12/16 - 12/23 (22)
- ► 12/09 - 12/16 (17)
- ► 12/02 - 12/09 (18)
- ► 11/25 - 12/02 (20)
- ► 11/18 - 11/25 (18)
- ► 11/11 - 11/18 (16)
- ► 11/04 - 11/11 (12)
- ► 10/28 - 11/04 (1)
- ► 10/21 - 10/28 (14)
- ► 10/14 - 10/21 (5)
- ► 09/30 - 10/07 (9)
- ► 09/23 - 09/30 (8)
- ► 09/16 - 09/23 (10)
- ► 09/09 - 09/16 (4)
- ► 08/26 - 09/02 (8)
- ► 08/19 - 08/26 (4)
- ► 08/12 - 08/19 (6)
- ► 08/05 - 08/12 (17)
- ► 07/29 - 08/05 (29)
- ► 07/22 - 07/29 (40)
- ► 07/15 - 07/22 (41)
- ► 07/08 - 07/15 (21)
- ► 07/01 - 07/08 (34)
- ► 06/24 - 07/01 (29)
- ► 06/17 - 06/24 (36)
- ► 06/10 - 06/17 (24)
- ► 06/03 - 06/10 (27)
- ► 05/27 - 06/03 (54)
- ► 05/20 - 05/27 (9)
- ► 05/13 - 05/20 (10)
- ► 05/06 - 05/13 (59)
-
▼
04/29 - 05/06
(26)
- " Song Cycle " - Van Dyke Parks
- " O manuscrito encontrado em Saragoça,vol.1 e 2 " ...
- The Incredible String Band
- " The Hangman´s Beautiful Daughter " - The Incredi...
- " O grande aperto " - Rámon Gómez de la Serna
- " Forever Changes " - Love
- " The Return to form Black Magick Party " - Pop Levi
- " Ele foi Mattia Pascal " - Luigi Pirandello
- A propósito de Carmona Rodrigues
- As casas de Portugal
- Atlântico
- " O Castelo do Homem ancorado " - J.K. Huysmans
- Frases de Nelson Rodrigues
- Monocle
- " Everyman " - Philip Roth
- " Um bom homem é difícil de encontrar " - Flannery...
- Machado de Assis
- Belos cavalos
- The Decisive Moment
- Henri Cartier-Bresson
- Robert Capa
- Turner
- Turner
- Velázquez
- Sandy Denny
- Philip Roth
- ► 04/22 - 04/29 (3)
Acerca de mim
- O natural de Barrô
- " Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser
Links
- 1 Janeiro
- 31 da Armada
- A cidade surpreendente
- A lua que flutua-Tinta Azul
- A origem das espécies
- Abrupto
- Associação Portuguesa de Photographia
- Banda Desenhada-Geraldes Lino
- Bibi Fonfon(Desenho)
- Bibliotecário de Babel
- Bomba inteligente - Carla Quevedo
- Branco no Branco
- Cadeirão Voltaire
- Café Republica
- casadeosso
- Causa liberal
- Comiclopedia
- Confraria do vento
- Critica de cinema-Paixões e desejos
- Córtex Frontal
- Da literatura
- Decote de Deus
- Dias que voam-Revistas antigas
- Dicionário Texto Editora
- Divulgando Banda Desenhada
- Diário Económico
- Do Portugal profundo
- El Boomerang
- El Mundo
- El País
- Entre livros
- Expresso
- Folha de S.Paulo
- Fratura Exposta
- George Glazer Gallery
- História da publicidade e anúncio antigos
- If Charlie Parker Was a Gunslinger,
- Ilustração Portuguesa
- Jornal de Letras
- José Saramago
- João Pereira Coutinho
- Kapa
- La Republica
- Le Monde
- Ler e Tresler
- Les Rêveries du Promeneur Solitaire
- Libération
- Life
- Lonesome Music
- Memórias de África
- Miniscente
- Monocle
- Museu Histórico Nacional do Brasil
- Nona arte-BD online
- Novos livros online
- O Globo
- O Jansenista
- O silêncio dos livros
- Obscena
- Os dias da Música
- Os Meus Livros
- Para ler sem olhar
- Público
- Quintas de Leitura
- Real Companhia Velha
- Revista Atlântico
- Revista cultural
- Rui Tavares
- Sabadabada(Música Brasileira)
- Sites de História
- Sol
- Sound + Vision
- Storm - Magazine
- Teatro Anatómico
- The Guardian
- The Wire
- Veja
Outros Links
- Baudelaire
- Carlos Drummomd de Andrade
- Corto Maltese
- Desenho do quotidiano
- Emilio Biel
- Fernando Pessoa
- Frida Khalo
- Gustave Doré
- Gérard Castello-Lopes
- Heidegger
- Henri Cartier-Bresson
- Ilustrações séc. XIX
- Jacques Tati
- James Nachtwey
- Joey Lawrence
- Jorge Sena
- La Fontaine
- Liberalismo
- Los nueve libros de la Historia-Heródoto
- Machado de Assis
- Marcel Proust
- Monet
- Montaigne
- Nelson Rodrigues
- Nicole Kidman
- O Livro do Desassossego
- Plan 59(ilustrações)
- Preto e Branco
- Revista Cabinet
- Revista Histórica
- Robert Capa
- Sebastião Salgado
- Tintoretto
- Tiziano
- Turner
- Vinings Gallery
- Will Eisner
- Ésquilo
Sem comentários:
Enviar um comentário