Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

terça-feira, 1 de maio de 2007

" Everyman " - Philip Roth

Êxtase para continuar a se sentir vivo

Roth, que não se cansa de experimentar com próprio estilo, retorna à oposição entre corpo e intelecto

por Nadine Gordimer

Homem comum, Philip Roth, trad. Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, no prelo

Para três dos maiores romancistas do mundo, Carlos Fuentes, García Márquez e Philip Roth, a violenta irrupção do desejo sexual na velhice é a resistência do homem à morte. É a sacudida final da próstata, diria meu velho amigo médico.Mas o tema não pode ser resumido dessa forma perversa, não quando é abordado na ficção contemporânea desses escritores das duas Américas. Memórias de minhas putas tristes, de García Márquez, Inez, de Fuentes, e A marca humana, Animal agonizante e, agora, Homem comum, de Roth, têm em comum o fenômeno do desejo sexual tardio, apresentado como semelhante ao da adolescência. Quando “pensar é se encher de tristeza”, o último pedido de exuberância é ver o corpo lentamente desnudado; surge então a dúvida sobre a suposta superioridade das recompensas do intelecto. Em Animal agonizante, David Kepesh afirma que o fenômeno é a inegável afirmação do “patrimônio erótico”, e o mesmo vale para Homem comum, o novo protagonista sem nome (talvez porque seja o próprio autor) de Philip Roth.A história começa quando ele está morto. Mas o reconhecemos imediatamente: exerce uma profissão cultural (ainda que duvidosa) e gosta de passar o tempo pintando; foi casado várias vezes; tem filhos com os quais não se relaciona. É o homem que Roth escolheu, há muito tempo, para suportar o fardo humano, como qualquer escritor seleciona determinados tipos. Antes de morrer, esse jornalista cultural sepultado morou em uma cidade distante durante vários anos. Os parentes, entre os quais uma ex-esposa, estão no túmulo ao lado. Sua filha mais querida, Nancy, decidiu enterrá-lo em um cemitério judeu semi-abandonado, embora soubesse que o pai era ateu: ele amava os pais e ficaria assim perto deles.Roth exerce o direito de praticar diversos modos literários, mas não se cansa de experimentar com o próprio estilo. Do túmulo o homem é trazido de volta à vida e para um período anterior à sua concepção. Aqui, a cronologia da vida não é a do calendário, mas a das referências cruzadas; logo estaremos em um túmulo ainda mais antigo. Após a recriação da infância do jornalista cultural enquanto espera por uma das “intervenções médicas” que manterão seu corpo geriátrico, ele retorna ao dia do funeral de seu pai. É o mesmo cemitério judeu fundado por imigrantes. A joalheria do pai está viva em sua mente. Aberta em 1933, o negócio sugere bem a audácia dos imigrantes: “Diamantes, Jóias, Relógios”. Para que o nome judeu não “afugentasse ou assustasse os milhares de cristãos, ele estendeu o crédito livremente e nunca quebrou por isso: o benefício gerado por sua flexibilidade compensou”. Um bom homem, reconhece o filho.


Talvez somente em uma vida com certas limitações seja possível ser bom. A questão é intrigante e cabe ao leitor refletir lendo os escritos de Roth. A razão para se arriscar a abrir um negócio em plena depressão “era simples”: Ele “tinha de deixar algo aos dois meninos”. No contexto de Roth, não se trata de algo sentimental, mas de um princípio implícito de sobrevivência com conotações que levam o leitor à interminável presença dos imigrantes, geração após geração, de país a país, judeus, irlandeses, muçulmanos, sem outras raízes além do superficial vínculo estabelecido com o solo natal dos outros.Se a amplitude descritiva declinou no final do século XIX, Philip Roth, que percorre as épocas e os territórios do mundo, ressuscitou-a na descrição investida com o poder da narrativa. O túmulo do pai é – para o leitor sagaz, não para o filho – uma experiência pós-premonitória, cujo propósito é o retorno à sepultura em que Roth inicia a vida do filho, estabelecendo um vínculo entre este e seus antepassados. Nunca antes ele vira o ritual ortodoxo judeu, em que os parentes e não os funcionários do cemitério enterram o caixão. O que ele vê não é um punhado de pó simbólico sendo jogado, mas parentes e amigos erguendo pás de terra para cobrir o caixão. Imerso “na brutal retidão do enterro”, ele não experimenta reverência, mas horror. Repentinamente, “ele vê a boca de seu pai como se não houvesse caixão, como se a sujeira lançada na cova estivesse se depositando diretamente sobre ele, enchendo sua boca, cegando seus olhos, entupindo suas narinas e fechando seus ouvidos. (…) Ele ainda podia sentir a sujeira revestindo sua boca bem depois de deixar o cemitério e retornar a Nova York”. É o gosto da morte.“Professor do Desejo”: seria possível dar esse epíteto, título de um de seus primeiros romances, ao escritor Philip Roth, sem desrespeito e com admiração. Com o domínio e a integridade de sua escrita, Roth provou a diferença entre o erótico e o pornográfico, em uma época marcada pelo último. A premissa de sua obra é que nada que o corpo oferece deve ser rejeitado, desde que não cause dor. Com maravilhosa presunção ele parece ter escrito o Kama Sutra dos séculos XX e XXI. Ele afirma a alegria do intercurso sexual e a esplêndida habilidade do corpo.Se Portnoy nunca cresceu, apenas se tornou mais velho, ele é, em sua posição atual, um homem comum cujo criador faz do termo “insight” algo a ser deixado de lado por inadequado. O que Roth sabe da oposição/aposição entre corpo e intelecto é profundo e não pode ser ignorado, assim como o grafite de Thomas Mann na parede do século XX não pode ser apagado: “Em nossa época o destino do homem apresenta seu significado em termos políticos”. Roth aborda esse outro grande tema do impulso existencial humano – a política – com a mesma perspicácia com que trata da sexualidade. Os personagens de Roth, ativistas políticos ou não, vivem em nosso mundo – e o decoro da academia é seu microcosmo togado – aterrorizado pelo medo do Outro estrangeiro e pelo autoritarismo de Estado em nossa casa. Em seu soberbo e incomparável livro Complô contra a América, ele insere o passado no presente. A veneração por Charles Lindbergh torna plausível sua ascensão à presidência dos Estados Unidos, apesar da admiração por Hitler. Bush nunca elogiou os nazistas, mas não é nenhuma fantasia o entusiasmo que desperta, por meio do medo, nos americanos que votaram nele, americanos cujos filhos retornam mortos da guerra e que assistem as terríveis imagens de iraquianos mortos. O anti-semitismo de Lindbergh prenuncia os fundamentalismos que hoje nos acossam.
Saímos de Homem comum com a verdade clara de que a subserviência, conotações sexuais à parte, é uma traição à responsabilidade humana. A resistência é mais profunda em nós do que o impulso para a liberdade. Em Homem comum, a experiência sensual invoca a glória de estar vivo, mesmo que “se esquivar da morte se torne a preocupação central da vida e a decadência do corpo sua história”. Philip Roth é um magnífico vitorioso na tentativa de refutar a afirmação de George Lukács de que seria impossível o an¬seio do escritor de abarcar a vida inteira.

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