Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

No seu aniversário


« Senão, era ver Rosamaria, com o seu ar de bruxa em sabat, com aquele riso carnívoro que só de ouvi-lo era como um galope de garanhões e um voo de pretas aves em eucaliptos; como se trocassem moradas, rotas, mapas dos desejos. Era só ver a sua própria mulher, Beth, tão gasta como um pano de cozinha, dessa beleza que se convencionou ser austera, mas que é afinal sinal de maus ovários, mau fígado, más veias. O sangue corria aos tropeções nos seus capilares e eles rebentavam, e ficava a dor lancinante que ela dizia ser como uma agulha que passasse nas suas veias. Mas não dispensava ser amada, doente como era, sempre prestes a receber a dor como um filho, a enfaixá-la, a carregá-la no aconchego da carne; até tinha lubricidades, carinhos, apetites; era preciso, senão contentá-la, ao menos respeitar esses grotescos parênteses de amor que ela não merecia. O amor era para jovens belos e rapídissimos, que correm como o vento, saltam até às estrelas; e não aquele rugido triste de homem e mulher, aquela perseguição cheia de artes falsas, de ameaças, de ódio até, e que as crianças suspeitam como a chaga que respiram e que fede no quarto do casal. Os homens sabem que o amor é uma coisa divina, feita para gente divina; e, por isso, matam, porque não são divinos nem suportam interpretar o amor como uma farsa vulgar. Por isso morrem, e dão à morte nomes heróicos, como Sócrates deu, cruelmente marcado na sua prisão, que ele pediu para o corpo velho e sem esplendor, de verme com consequências divinas, mas não divino.»
Fotografia de Agustina Bessa Luís, por Jorge Afonso
Excerto de " Os meninos de ouro "(1983), Ed. Guimarães Editores, 7ª Edição(1987)

Sem comentários:

Arquivo do blogue

Acerca de mim

" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

FEEDJIT Live Traffic Feed