Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O livro das peças isabelinas

" Laruelle havia aberto o livro das peças isabelinas ao acaso e, por um momento, deixou-se ficar alheio ao que o cercava, a olhar para aquelas palavras, que pareciam possuir o poder de lhe precipitar a própria mente para dentro de um abismo, como se no seu espírito se cumprisse a ameaça que o Fausto de Marlowe lançara ao seu desespero. Mas o Fausto não dizia bem aquilo. Leu o passo com mais atenção. O que Fausto dizia era o seguinte:« Então me precipitarei para dentro da Terra» e «Oh, não, ele não...» Assim, já não era tão impressionante. Nas circunstâncias actuais, correr não era tão mau como voar. Gravada na capa de cabedal castanho do livro, uma figurinha doirada e sem rosto corria sempre, transportando um archote, e parecendo, com o seu pescoço alongado, a cabeça e o bico aberto uma íbis sagrada. Envergonhado consigo próprio, Laruelle soltou um suspiro. Que é que teria produzido aquela ilusão - a luz vacilante e enganadora da vela, de mistura com a luz já menos mortiça da electricidade, ou talvez mesmo - como Geoffrey gostava de dizer - alguma relação entre o mundo subnormal e o anormalmente duvidoso? Como o Cônsul se havia divertido também com aquela absurda brincadeira - as sortes shakespeareeanae... And what wonders I have done all Germany can witness. Enter Wagner, solus... Ick sal you wat suggen, Hans. Dis skip, dat comen from Candy, is al vol, by God´s sacremente, van sugar, almonds, cambrick end alle dingen, towsand ding. Laruelle fechou o livro na comédia de Dekker; depois, mesmo na presença do homem do bar que, de pano sujo no braço, o observava num mudo assombro, fechou os olhos e, abrindo de novo o livro, fez girar o dedo no ar e poisou-o decididamente num passo que voltou para a luz:


Eis cortado o ramo que poderia ter atingido pleno desenvolvimento,
Eis queimado o loureiro de Apolo
Que outrora floresceu dentro desse homem sabedor,
Fausto deixou de existir: vejam como cai nos infernos!

Excerto de " Debaixo do Vulcão ", de Malcolm Lowry, Trd. Virgínia Motta, Ed. Livros do Brasil

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