Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Mercador de Veneza

" Shakespeare é um homem que afirma que todas as profissões, todas as épocas, todos os pontos de vista podem ser apanhados por essa rede de palavras que ele lança, como lança a sua rede um pescador. Para ele, nada no universo humano escapa à palavra e ao dizer. Quando ele recolhe a rede, tudo está lá. Tem na mão cada um de todos os peixes que nadam na totalidade cósmica. O mistério é ainda maior pelo facto de nada sabermos dele. Para Shakespeare tudo é para ser dito, como a Wittgenstein caberá mostrar que os limites do mundo são os limites da linguagem. Todas as províncias pertencem ao mundo de Shakespeare, todos os continentes, todos os oceanos - é um verdadeiro mapa-mundo. Excede-nos a todos, porque através da sua obra é o próprio mundo que se interessa pelo animal de linguagem e de símbolos que nós somos. Shakespeare prova a possibilidade última do dizer. Ajuda-nos do mesmo modo a compreender uma das passagens mais árduas de Aristóteles, que costuma citar-se como se fosse, aos olhos de todos, uma evidência. (...) Todos os manuais citam a frase de Aristóteles no capítulo VI da Poética: " A poesia é mais verídica que a história ". É uma frase que nunca deixou de me espantar, desde o primeiro dia em que tentei compreendê-la. Aristóteles ensina-nos que a ficção é mais verdadeira que a queda de Alcibíades narrada por Tucídides. O que merece uma explicação. É demasiado simples seguirmos Corneille afirmando que há lugar na ficção para as universalidades e as generalidades. Eis que estou em Veneza, vejo que é a cidade de Shakespeare, do Mercador, do Rialto. Ouço pessoas que perguntam que novas há no Rialto. Ou estou em Verona e descubro que é a cidade de Romeu e Julieta. Shakespeare nunca esteve lá. Criou o que se limitava a existir. E eis como compreendo a história inglesa. Os historiadores referem que Ricardo II abdica e que Ricardo III mata Henrique V em Azincourt. Por mim, nego totalmente tais factos, e tenho vinte e oito arquivos em minha casa; nada prova que as coisas se tenham passado assim. Shakespeare surge qualquer que seja a situação, qualquer que seja a política. Os nossos ciúmes são os de Otelo, as nossas senilidades as de Lear, as nossas ambições as de Macbeth. Vivemos na jactância da sua visão. Entramos no molde das suas previsões. A ficção oferece à vida possibilidades de identificação; identificamos a nossa situação mais pela ficção que pelo documento. A história não é nomeadora. O Génesis diz que os animais e os seres do Paraíso são como Adão os nomeou. Imensa tautologia! As coisas são como Shakespeare as nomeia, o que seria surpreendente da parte de um simples autodidacta, de um actor vagabundo. "
Excerto de " A presença de Shakespeare ", in Ramin Jahanbegloo - Quatro entrevistas com George Steiner. Trd Miguel Serras Pereira, Ed. Fenda(2006)

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