" Se existissem domínios mais sombrios da noite ele tê-los-ia descoberto. Jazendo com os dedos enfiados nos ouvidos para não esquecer o chilreio estridente dos miríades de grilos negros com quem partilhava a choupana de paredes nuas. Uma noite, meio adormecido na enxerga, ouviu algo galopar pelo quarto e saltar fantasmagoricamente ( viu ele, enquanto lutava para se erguer) pela janela aberta. Ficou sentado buscando em volta com o olhar mas o vulto tinha desaparecido. Conseguia ouvir cães de caça gritando a plenos pulmões, lamentos torturados e latidos quase de agonia vindos do ribeiro, subindo o vale. Inundaram o pátio da choupana num pandemónio de uivos em soprano e arbustos entrechocando-se. Ballard, nu e de pé, viu à ténue luz das estrelas a porta da frente encher-se da soleira para cima com cães vociferando. Ali ficaram por um momento numa moldura palpitante de pelagens malhadas e depois arquearam-se para a frente e encheram o quarto, descreveram um círculo num crescendo de corpos entrelaçados e depois precipitaram-se de roldão pela janela fora entre uivos dissonantes, arrastando primeiro os pinázios, a seguir o caixilho, deixando um buraco quadrado e nu na parede e um tinido nos ouvidos de Ballard. Enquanto ele ali estava praguejando mais dois cães entraram pela porta. Pontapeou um ao passar, enterrando-lhe os dedos nus no quadril ossudo. Estava aos saltos, guinchando agarrado ao pé, quando um último cão entrou no quarto. Caiu sobre ele e agarrou-lhe uma pata traseira. O animal lançou um uivo penoso. Ballard golpeou-o cegamente com o punho fechado, pancadas fortes e insistentes que ecoaram no quarto quase vazio por entre imprecações e queixumes desesperados."
Excerto de " Filho de Deus ", de Cormac McCarthy, Trd. Paulo Faria
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