Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Um grito na rua *

" Levantou o indicador e escandiu o ar com gesto de velho antes que sua voz falasse.
- Guarde minhas palavras, senhor Dedalus - disse. - A Inglaterra está nas mãos dos Judeus. Nos mais altos postos: nas finanças, na Imprensa. E são o sinal da decadência de uma nação. Tenho visto a sua aproximação nestes anos. Tão certo quanto estamos aqui os mercadores judeus já estão em seu trabalho de destruição. A velha Inglaterra está morrendo.
Deu umas passadas rápidas, seus olhos retomando vitalidade azul no que cruzavam um amplo raio de sol. Deu meia volta e retornou.
- Morrendo - disse -, se já não morta.


Das ruas o refrão das rameiras enterra
Em sua vil mortalha esta velha Inglaterra.


Seus olhos escancarados em visão enfrentavam severos o raio de sol sob que parara.
- Mercador - disse Stephen - é quem compra barato e vende caro, seja judeu ou cristão, não é ?
- Eles pecaram contra a luz - disse gravemente o senhor Deasy. - E o senhor pode ver a escuridão nos seus olhos. E é por isso que eles são errantes sobre a terra até aos dias de hoje.
Nos degraus da bolsa de valores de Paris homens auribrunidos leiloando cotações com seus dedos anelados. Grasnidos de gansos. Formigavam bulhentos, alheios ao templo, as cabeças conspirateando sob canhestras cartolas. Não deles: essas roupas, essa língua, esses gestos. Seus lerdos olhos plenos fementiam as palavras, seus ávidos gestos inofensivos, mas sabiam dos rancores acumulados ao seu redor e sabiam da vacuidade de seu ardor. Vã paciência no empilhar e entesourar. O tempo seguramente dispersaria tudo. Tesouro acumulado à margem do caminho: pilhado e pisoteado. Seus olhos sabiam dos anos vagabundos e, pacientes, sabiam das desonras de sua carne.
- E quem não pecou? - perguntou Stephen.
- Que é que o senhor quer dizer? - ripostou o senhor Deasy.
Avançou de um passo e parou perto da mesa. Seu queixo inferior pendia lateral aberto de incerteza. É isso a velha sabedoria? Espera ouvir-me.
- A história - disse Stephen - é um pesadelo de que tento despertar-me.
Do campo de jogo os garotos levantavam um brado. Um assobio zunindo: golo. Quê então se esse pesadelo lhe desse um pontapé por trás?
- Os caminhos do Criador não são os nossos - disse o senhor Deasy. - Toda a História se move em direcção a um grande alvo, a manifestação de Deus.
Stephen ejectou o polegar em direcção da janela, dizendo:
- Deus é isso.
Hurra! Eia! Hurrhurra!
- O quê? - perguntou o senhor Deasy.
- Um grito na rua - respondeu Stephen, dando de ombros. "


* Excerto de " Ulisses ", de James Joyce, Trd. António Houaiss, Ed. Difel,1983

1 comentário:

spring disse...

olá Luís!
obrigado pela visita comentário.
passar por aqui e encontrar textos de James Joyce é estar no caminho apontado por esse personagem de "Ulisses"
abraço cinéfilo
PS De Joyce no cinema temos sempre esse espantoso testamento de John Huston chamado "The Dead".

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