Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

domingo, 10 de maio de 2009

« Era do lado de Méséglise, em Montjouvain, casa situada à beira de um grande charco e encostada a um talude de silvedos, que morava o senhor Vinteuil. Por isso, encontrávamos muitas vezes no caminho a sua filha, que conduzia um buggy a toda a velocidade. A partir de um certo ano, nunca mais a vimos só, mas acompanhada de uma amiga mais velha, que tinha má fama na região e que um dia se instalou definitivamente em Montjouvain. Dizia-se: «É preciso que o pobre senhor Vinteuil esteja cego pela ternura para não dar por aquilo que se conta, e para permitir, ele que se escandaliza com uma palavra deslocada, que a filha ponha a viver debaixo do seu tecto uma mulher daquelas. Diz ele que é uma mulher superior, um grande coração, e que teria predisposições extraordinárias para a música se as tivesse cultivado. Mas pode estar certo de que não é de música que ela trata com a sua filha.» O senhor Vinteuil dizia aquilo; e, com efeito, é notável como uma pessoa provoca sempre admiração pelas suas qualidades morais em casa dos pais de qualquer outra pessoa com quem tem relações carnais. O amor físico, tão injustamente desacreditado, força de tal modo todo e qualquer ser a manifestar até às mínimas parcelas que possui bondade e desprendimento de si mesmo, que estas qualidades resplendem mesmo aos olhos dos que o rodeiam de perto. O doutor Percepied, cuja voz grossa e grossas sobrancelhas permitiam representar quando quisesse o papel de pérfido, para que não possuía o físico adequado, sem comprometer em nada a sua inquebrantável e imerecida reputação de ríspido benfeitor, sabia a fazer rir até às lágrimas o prior e toda a gente dizendo num tom rude: «Bem! Acho que ela faz música com a amiga, a menina Vinteuil. Parece que se admiram com isso. Eu cá não sei. Foi o pai Vinteuil que ainda ontem mo disse. No fim de contas, a rapariga tem todo o direito de gostar de música. Mas eu não sou daqueles que contrariam as vocações artísticas dos filhos. E parece que Vinteuil também não. E, além disso, ele também faz música com a amiga da filha. Ah, coa breca, tanta música que se faz naquela casa. Mas porque é que se estão a rir? A verdade é que aquela gente faz música de mais. No outro dia encontrei o pai Venteuil perto do cemitério. Mal se tinha nas pernas.»

Excerto de "Do lado de Swann "( Em busca do Tempo Perdido), de Marcel Proust, Trd. Pedro Tamen, Ed. Círculo de Leitores, p.p. 156/157

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