Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Identificação de uma mulher(3)


" Eu continuei sem dizer nada, olhando-o com grande tristeza, os meus lábios mascarados pela franja do meu xaile preto. Ficou um momento junto à vidraça pela qual, hesitante, esbarrando-se e zumbindo, uma mosca subia, subia e caía de novo. Depois passou o dedo pelas lombadas dos livros na minha estante. Como a maior parte das pessoas que lêem pouco, sentia uma afeição rasteira por dicionários e vai então de tirar um grosso volume cor-de-rosa com uma corola de dente-de-leão e uma rapariga de cabelos ruivos na capa.

- Korochaia chtuka - disse ele: pôs no sítio a chtuka(coisa) e de súbito desatou a chorar. Mandei-o sentar-se ao meu lado no divã, ele tombou para um lado, com os soluços a aumentarem, e acabou por enterrar a cara no meu regaço. Dei uma palmadinha leve na lixa do seu escalpe e na robusta nuca rosada que considero tão atraente nos homens. Aos poucos, os espasmos foram cedendo. Ele mordeu-me de mansinho através da saia e sentou-se.

- Sabes que mais? - disse Pavel Romanovitch, e enquanto falava estalou sonoramente as palmas côncavas das suas mãos colocadas na horizontal ( não pude deixar de sorrir ao lembrar-me de um tio meu, proprietário rural no Volga, que costumava descrever assim o som de uma procissão de dignas vacas ao deixarem cair a bosta ). - Sabes que mais caríssima? Vamos para minha casa. Não suporto a ideia de estar lá sozinho. Jantamos, bebemos umas vodcas, depois vamos ao cinema... Que dizes?

Não podia recusar a sua oferta, embora soubesse que me ia arrepender. enquanto telefonava para o antigo emprego de Niki ( ele precisava das galochas de borracha que lá deixara ), vi-me ao espelho da entrada, parecia uma freira decadente com cara de cera austera; mas no minuto seguinte, quando passei ao acto de me embelezar e de pôr o chapéu, como que mergulhei no fundo dos meus grandes olhos negros experientes e aí encontrei um brilho nada freirático: mesmo através da voilette, como eles ardiam, céus, como ardiam!


Excerto do conto " Um caso verídico ", de Vladimir Nabokov, Trd. Telma Costa
Fotografia de Ewa Brzozowska

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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