OS DESTINOS APRISIONADOS NA DISTANTE SOLIDÃO DA ESTEPE
Uma obra-prima do século XX coloca algumas questões existenciais.Há livros que parecem presos no destino das suas personagens alguns atingem a glória devido à fama de uma figura marcante que atravessa o texto; outros vivem numa espécie de recolhimento, tal como fazem os respectivos protagonistas. O Deserto dos Tártaros faz parte do segundo grupo, pois imitou o herói na modéstia, condenado a um injusto esquecimento.No futuro, este será talvez visto como um dos grandes romances do século XX. E, no entanto, livro de culto em muitas línguas, é difícil de encontrar, apesar de adorado por minorias militantes. Em português, estas belas páginas chegam pela mão da Cavalo de Ferro, numa tradução de Margarida Periquito.O Deserto dos Tártaros é uma etérea (e também cruel) metáfora sobre um mundo imóvel que se recusa a ver a realidade. Uma visão pessimista da existência humana, na busca do sentido para o tempo que corre, do ser perante os grandes espaços da dúvida e do vazio, da solidão e do mistério da morte. No fundo, este romance mágico fala da planície que todos nós contemplamos para a frente das nossas vidas, uma paisagem ameaçadora e imóvel, habitada pelo desconhecido.Não é surpreendente que o livro seja tão sombrio, pois foi escrito em 1939 por um jornalista, Dino Buzzati, que certamente percebia bem as ameaças que se aproximavam. Buzzati (1906-1972) é uma figura fascinante escreveu e pintou, escreveu crónicas até ao fim da vida, no Corriere della Sera, e tem uma importante obra literária, com destaque para a arte do conto. Neste caso, o autor terá retirado a inspiração das suas reportagens na Etiópia, onde a Itália de Mussolini tentava criar um império que pudesse equiparar-se à grandeza de Roma.Mas a perspectiva de Buzzati nunca é política, o que explica a universalidade do texto. A fortaleza de Bastiani fica nas fronteiras de uma monarquia imaginária, povoada por um exército não identificado. Podemos talvez visualizar uma sociedade europeia do primeiro terço do século. O filme homónimo de Valerio Zurlini recria uma espécie de exército austro-húngaro, mas seria viável colocar a acção num contexto, por exemplo, de ficção-científica. Ou no cenário de um jornal, na condição de haver pequenas vaidades e tarefas que se consomem no próprio dia.
Luís Naves, Diário de Notícias
O Deserto dos Tártaros
Dino Buzzati
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