Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Kafka




Fotografia de Kafka ( 1922 )



Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, nao pode autorizar lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -"É possivel" - diz o guarda. -"Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -"Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estao guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim".
O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: -"Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste".
Durante anos seguindos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao f im de tanto examinar o guada durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte esta próxima.
Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeca as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo ja arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferenca de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. -"Que queres tu saber ainda?",pergunta o guarda. -"És insaciável".
-"Se todos aspiram a Lei", disse o homem. -"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar. O guarda da porta, apercebendo se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte. -"Aqui ninguém mais, senao tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a".


Obs: Esse conto faz parte também das cenas finais no livro de Kafka "O Processo".

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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