QUINTA DAS LÁGRIMAS
Fui há muitos anos à Quinta das Lágrimas, onde se diz que Inês foi morta. Lembro-me que se transpunha o rio atravessando uma ponte de madeira cujas tábuas gemiam e baloiçavam. Parecia uma ponte militar, para assédio à cidade.
A Quinta das Lágrimas esteve para ser comprada pelo meu pai quando ele veio do Brasil e se deixava sugestionar pelas lendaz históricas e coisas famigeradas de glória antiga. Havia uma enorme árvore da cânfora nos arredores da casa, que era como uma estufa, com muitos vidros e caixilhos descascados. Numa caleira de pedra corria a água. sobre um líquen vermelho. Dizia-se que era «o sangue de Inês». Como disse, a moradia era decepcionante, um pouco ao estilo dos chalés de Sintra em que veraneavam os banqueiros do século XIX e os ricos-homens dos cafezais de S. Tomé. Estavam na moda os jardins de Inverno, e nesse tipo de casas havia pavilhões envidraçados onde se tomava chá e bebia água de sifão. Mas não posso garantir que na Quinta das Lágrimas fosse assim.
Era numa tarde muito quente, em Maio. O calor de Maio, em Coimbra, traz no coração o perfume da tília em flor; desde o alto do Jardim da Sereia ele abate-se até ao fundo da cidade como um lenço abafante e suave. É um calor e um perfume que deprimem. Acompanham os estudantes quando eles revêem a matéria, fumando com gesto irritado e deixando o olhar parar nas varandas da frente onde outros estudantes mourejam nas páginas das sebentas.
Mas, voltando à Quinta, que está num vale sem horizontes, que seriam dantes os fecundos campos de regadio, com manantes a visitar-lhe os muros para roubar capôes e melancias: estranhei-a, de tão deserta. Não havia um só visitante, ou um morador; e não vi também guardião. Só um cãozito sujo, de pêlo em que a lama secara, me lançava de longe alguns ladridos curtos, sem cólera, por simples obrigação.
A casa não tinha cortinas nem vestígios de ser habitada. Havia, em volta, alguns canteiros onde crescera a beldroega e umas açucenas tão altas que podiam chamar-se o bordão de S. José. Na parede, uma mancha de água que se infiltrara pelo telhado parecia a sombra de uma mulher; uma mulher alta e corpulenta, que risse, os ombros deitados para trás. Ouvi, ou pareceu-me, um arrastar de passas, mas durou pouco; tudo ficou silencioso outra vez. Porém, quando eu já me afastava vi, sentada numa velha cadeira de verga, uma senhora ainda nova, com uns óculos na mão direita e que olhava para mim com uma frieza condescendente. Se era a dona da casa era uma excêntrica, porque estava vestida com uma saia cor de ferrugem, tendo por cima um vestido verde, aberto, e um cinto dourado. Os cabelos usava-os soltos e eram de um belo loiro carregado com reflexos mais claros sobre as orelhas. O rosto era rosado, mas notava-se que usava carmim, muito fino e brilhante. Estendeu as pernas com um movimento preguiçoso; estavam nuas e eram tão brancas como o ventre das trutas. Até certo ponto parecia muito uma lavradeira abastada, dessas do Alto-Minho que se descalçam ao fim das tardes de Verão para ir regar, [...]
AGUSTINA BESSA LUIS, “Adivinhas de Pedro e Inês”,
GUIMARÃES & C.a, EDITORES, 1983, pp. 7, 8
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