Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Agustina Bessa-Luís

A SENHORA CLARINHA

Em Fontelas de Cima, repentino sobrado do Alto Douro, ficava a venda da senhora Clarinha. Era uma mulher baixinha, minuciosa nas contas, pouco afeiçoada à clientela, mas mais correcta de maneiras do que éhabitual em patroa de balcão e locanda. A montra, feita duma janela ainda apresentável no seu parapeito verde, exibia maços de velas e lamparinas. A senhora Clarinha servia as necessidades das almas e outras que o não eram. Ela própria tinha a sua devoção pessoal a 5. Judas Tadeu; oferecia-lhe todos os meses um litro de azeite, do melhor, e um quilo de bolachas jazz band. Não que o santo, no seu pequeno soco de escaiola, demonstrasse apetite e gostos adamados. Quem comia as bolachas era o Tito, filho de sacristão e cara de Caim. Era um exemplo paleolitíco com aquela fauce bravia e os olhos juntos. Atirava pedradas aos carros, corria de rastos, tinha escon­derijo nas minas e nas pedreiras. Mas sabia o seu latim e tocava a Santos como se quisesse fazer cair as mura­lhas de Jericó. Enfim, havia prós e contras nesse cham­bão. No coro, com a opa de cetineta vermelha, estava regular; no adro, parecia ainda humano; na torre do sino, um morcego vampiro ou gárguia de Nôtre Dame. Vamos lá destrinçar as espécies e fazer paleontologia! O caso é outro.
A senhora Clarinha, numa manhã de Maio, recebeu uma carta extraordinária. Era dirigida aos devotos de S. Judas Tadeu e devia ser copiada duzentas vezes e mandada a outros tantos fiéis, a começar pelo nome que lhes era indicado. Porém o nome não constava na carta, e a senhora Clarinha achou-se embaraçada para cumprir aquela intimação; o que a punha em perigo gravíssimo. Interrompida a cadeia, caíam sobre ela desgraças impos­síveis de evitar, como incêndios, inundações, mortes de parentes e amigos. Ela estava muitíssimo apoquentada e fechou a loja antes das sete horas. Sentou-se numa cadeirinha de palha e pôs-se a pensar. Tinha algum dinheiro, nome honrado e uma vinha com o seu quartei­rão de oliveiras. A casa era dela, com duas salas com um fausto de vistas e uma coroa de bouças velhas em volta. Tinha de tudo na loja — fio de Norte, papos-secos, tesouras da poda. Também vendia grandes rebuçados de avenca, quase do tamanho de pires e embrulhados em papel de seda branco. Desde Fontelas de Cima até Moura Morta, eram famosos. A senhora Clarinha abanou tristemente a cabeça. Não tinha esperança de escapar à ter­rível ameaça que sobre ela desabara. O Tito, que vinha à noite trazer a canada do leite, encontrou-a meio transtornada e com a carta na mão.
— Lê o que aí diz — pediu ao rapaz. Ele juntou as letras, foi-se explicando.
— Duzentas vezes esta letania! Deite-a fora, não faça caso.
— A carta de S. Judas? Não se pode, é proibido.
Estava tão branca atrás do mostrador verde, que era como uma aparição. Um feixe de ráfia projectava atrás dela uma espécie de auréola loira. O Tito teve medo, e não era um moço acanhado. As ratoeiras a fogo, nos laranjais, já lhe tinham acertado nas pernas duas ou três vezes.
Em poucos dias, a senhora Clarinha morreu do aperto de alma em que estava. Não pôde mandar a ‘carta de S. Judas Tadeu’, e alguma coisa ‘tinha que lhe acontecer’ Deus nos livre do que o destino manda sem nos dar o direito de executar a sua ordem. Ai!
Datado: 10-8-1974

AGUSTINA BESSA LUIS, CONVERSAÇÕES COM DMITRI E OUTRAS FANTASIAS,
Inverso, A REGRA DO JOGO, 1979, p. 35

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