Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A caça

« Penso no meu filho que está longe, a milhares de quilómetros, num país onde ainda se dorme na cama, e a sua imagem parece-me irreal, esfuma-se e perde-se entre as folhas da árvore, e em troca faz-me tão bem recordar um tema de Mozart que me acompanhou desde sempre, o movimento inicial do quarteto A caça, a evocação do halali na mansa voz dos violinos, essa transposição de uma cerimónia selvagem para um claro gozo imaginário. Penso-o, repito-o, trauteio na memória e sinto ao mesmo tempo como a melodia e o desenho da copa da árvore contra o céu se vão aproximando, travam amizade, se tacteiam e outra vez até que de súbito o desenho se ordena na presença visível da melodia, um ritmo que sai de um ramo baixo, quase à altura minha cabeça, eleva-se e abre-se como um leque de hastes, enquanto o segundo violino é esse ramo mais delgado que se justapõe para confundir as suas folhas num ponto à direita, até ao final da frase, e deixá-la terminar para que o olho desça pelo tronco e possa, se quiser, repetir a melodia. E tudo isso é também a nossa rebelião, é o que estamos fazendo ainda que Mozart e a árvore não possam sabê-lo, também nós à nossa maneira quisemos transpor uma torpe guerra para uma ordem que lhe dê sentido, a justifique e em última análise a leve a uma vitória que seja como a restituição de uma melodia depois de tantos anos de roucas trompas de caça, que seja esse allegro final que sucede ao adágio como um encontro com a luz. O que se divertiria Luís se soubesse que neste momento o estou comparando com Mozart, vendo-o ordenar pouco a pouco esta insensatez, elevá-la até à sua razão primordial que aniquila com a sua evidência e a sua grandiosidade todas as prudentes razões temporais. Mas que amarga, que desesperada tarefa a de ser músico de homens, por cima da lama e da metralha e do desalento, urdir esse canto que julgámos impossível, o canto que travará amizade com a copa das árvores, com a terra devolvida aos seus filhos. É da febre. E como riria Luís ainda que também a ele lhe agrade Mozart.
E assim finalmente hei-de dormir, mas antes darei comigo a perguntar-me se algum dia saberemos passar do movimento onde ainda soa halali do caçador, a conquistada plenitude do adágio e daí ao allegro final que trauteio em voz baixa, se seremos capazes de conseguir a reconciliação com tudo o que tenha ficado vivo frente a nós. Teríamos que ser como Luís; não apenas consegui-lo, mas ser como ele, deixar para trás o ódio e a vingança, olhar o inimigo como o olha Luís, com uma implacável magnamidade que tantas vezes suscitou na minha memória ( mas isto, como dizê-lo a alguém? ) uma imagem do pantocrator, um juiz que começa por ser acusado e a testemunha e cujo julgamento não se limita a separar as terras das águas para que por fim nasça uma pátria de homens num amanhecer enevoada nas margens de um tempo límpido. »


Excerto de " Reunião ", de Julio Cortázar, Trd. Carlos Barata


" La chasse " ( Allegro) de Mozart

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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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