Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

« Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências se vai anulando e negando a si mesma na sua aparente repetição até que nada é nada nem ninguém é ninguém que tivesse sido antes, e a débil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e vêem e sabem o que não se diz nem tem lugar nem é cognoscível nem comprovável. O que se dá é idêntico ao que não se dá, o que rejeitamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e, no entanto, a vida vai-se-nos e vai-se-nos a vida em escolher e rejeitar e seleccionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça da nossa história uma história única que recordemos e possa contar-se. Revolvemos toda a nossa inteligência e os nossos sentidos e o nosso afã na tarefa de discernir o que será igualizado, ou já o está, e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando a verdade é que nada se afirma e tudo se vai perdendo. Ou talvez nunca tenha havido nada. »

Excerto de " Coração tão branco ", de Javier Marías, Trd. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Ed. Relógio d` Água, 1994


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" Muitas vezes, meu caro senhor, as aparências iludem, e quanto a pronunciar uma sentença sobre uma pessoa, o melhor é deixar que seja ela o seu próprio juiz. " Robert Walser

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