Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

terça-feira, 5 de maio de 2009

« Mas qual é a mensagem? É um ponto que ainda não consegui apanhar muito bem.
- A mensagem...? - Estava a tirar um vídeo-gravador do banco traseiro do Citroën, mas deteve-se para olhar para mim. - Pensava que tinha compreendido tudo, Charles.
- Não exactamente. Estes assaltos, destruir meia dúzia de televisores e escrever «Foda-se» na porta de uma garagem... é isso que vai mudar as vidas das pessoas? Se me assaltasse a casa, eu limitava-me a chamar a Polícia. Não ia inscrever-me num clube de xadrez nem juntar-me a um grupo coral.
- Absolutamente. O Charles chamaria a Polícia. E eu também. Mas suponha que a Polícia não faz nada e eu volto a assaltar-lhe a casa, levando desta vez uma coisa a que dê verdadeiro valor. Nessa altura, começa a pensar em fechaduras mais fortes e numa câmara de vigilância.
- E então? - Abri a bagageira do Porsche e esperei enquanto ele metia o vídeo-gravador lá dentro. - Voltámos à primeira casa. E eu volto à minha televisão por satélite e ao meu longo sono dos mortos.
- Não, Charles - explicou ele, pacientemente. - Não está a dormir. Agora está bem acordado, mais alerta do que alguma vez esteve. Os assaltos são as pulseiras dos católicos, que arranham a pele e apuram a sensibilidade moral. O próximo enche-o de raiva, inclusivamente de justa fúria. A Polícia é inútil, tudo o que faz é empatá-lo com falsas promessas, e isso cria uma sensação de injustiça, a sensação de que está rodeado por um mundo sem vergonha. Tudo à sua volta, os quadros e as pratas em que até agora quase nem pensava, passam a incluir-se neste novo enquadramento moral. Está mais consciente de si mesmo. Áreas do seu cérebro que não visitava há anos voltam a tornar-se importantes. Começa a reavaliar-se, exactamente como fez, Charles, quando o Renault ardeu.
- Talvez... mas não me dediquei ao t´ai chi nem começei um novo livro.
- Espere... ainda pode vir a fazê-lo - insistiu, desejoso de convencer-me. - O processo demora tempo... alguém caga na sua piscina, revolve-lhe o quarto e brinca com a roupa interior da sua mulher. Agora a raiva e a fúria já não bastam. É forçado a repensar-se a si mesmo a todos os níveis, como um homem primitivo a confrontar um universo hostil atrás de cada árvore e de cada rocha. Ganha consciência do tempo, da sorte, dos recursos da sua própria imaginação. Então, alguém assalta a senhora da porta ao lado, e você faz equipa com o marido ultrajado.
O crime e o vandalismo estão por todo o lado. Tem de erguer-se acima desses estúpidos bandidos e do mundo brutal que habitam. A insegurança obriga-o a valorizar as forças morais que possui, tal como os presos políticos decoram « A Casa dos Mortos» de Dostoievski ou os moribundos tocam Bach e redescobrem a fé, ou os pais de uma criança que morreu começam a trabalhar como voluntários num hospital.
- Apercebemo-nos de que o tempo é finito e deixamos de considerar seja o que for como dado adquirido?
- Exactamente. - Deu-me uma palmadinha no braço, feliz por poder acolher-me no rebanho. - Criamos comissões de vigilância, nomeamos um conselho local, orgulhamo-nos dos nossos vizinhos, aderimos a clubes de desportos e às sociedades de História locais, redescobrimos o mundo quotidiano a que dantes nem sequer ligávamos. Sabemos que é mais importante ser um pintor de terceira categoria do que ver um CD-ROM sobre a Renascença. Juntos, começamos a recr, e finalmente descobrimos todo o nosso potencial como indivíduos e como comunidade.
- E tudo isso é desencadeado pelo crime? - Peguei na cigarreira de prata caída no banco traseiro do Citroën. - Porquê esses disparador em particular? Porque não... a religião, ou qualquer espécie de vontade política? Ambas governaram o mundo, no passado.
- Mas já não governam. A política está arrumada, Charles, já não toca a imaginação das pessoas. As religiões surgiram demasiado cedo na evolução humana... criaram símbolos que as pessoas interpretaram literalmente, e estão tão mortas como uma fila de totemes. As religiões deveriam ter vindo mais tarde, quando a raça humana estivesse a aproximar-se do fim. Infelizmente, o crime é a única espora que nos faz avançar. Ficamos fascinados por esse «outro mundo» onde tudo é possível.
- Muita gente diria que já há crime mais do que suficiente.
- Mas não aqui! - Fez um gesto com o cavalo de jade na direcção das distantes varandas. - Não na Residência Costasol, nem nos aldeamentos de reformados ao longo da costa. O futuro aterrou, Charles, o pesadelo já está a ser sonhado. Eu acredito nas pessoas, e sei que elas merecem melhor.»

Excerto de " Noites de cocaína ", de J.G.Ballard, Trd. Mário Correia, Ed. Quetzal, 2003

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