Luís António Cardoso da Fonseca Mail: luiscardosofonseca@hotmail.com

sábado, 25 de agosto de 2007

" Eurídice " - José Lins do Rego

" Tinha como que perdido toda a consciência. Senti que andávamos no meio de árvores e vi o sol por cima das nossas cabeças. Voltara a mim para ver Eurídice a meu lado. E recordo-me dos seus olhos verdes, e mais do que nunca o cheiro do seu corpo se expandia, sufocava-me. Andámos um pedaço pela mata sombria. Havia cigarras cantando, ouvia bem o trinado de pássaros e o rumor de nossos pés pelas folhas secas. Agora o que existia em mim era uma mistura de ira e amor, de asco e desejo indomável. Eurídice falava manso, e a sua voz foi-me arrastando para uma espécie de precipício. Queria fugir e não podia. E sentámo-nos num recanto escondido. Ouvi bem que ela falava de Faria e os olhos estavam molhados. Procurei beijá-los, e ela fugiu da minha boca. Então, desencadeou-se em mim uma fúria que não era uma vontade minha. A fala de Eurídice mais ainda me exasperava. Ouvia-a como se fosse a voz áspera da minha mãe. Ao mesmo tempo, as palavras pareciam sair da boca de Isidora. Por fim calou-se, e o calor da tarde de Março diluía-se no correr manso do riacho aos nossos pés. Uma força estranha se apoderou de mim. O cheiro do corpo de Eurídice subia, afogava-me. Ela estava ali, quieta, mole, vencida. E, senhor de mim, capaz de vencer todos os obstáculos, debrucei-me sobre ela para esmagá-la. Eurídice resistiu, quis energia descomunal. Sabia que a tinha em minhas mãos e que as minhas mãos eram de ferro. E procurei a boca que fugia, que gritava, e aos poucos tudo foi ficando em silêncio pesado. As minhas mãos largaram o pescoço quente de Eurídice. E ela estava estendida, como na minha cama.
O corpo quase nu na terra fria.
E não senti mais nenhum cheiro do seu corpo. "

Excerto de " Eurídice ", de José Lins do Rego, Ed. « Livros do Brasil »

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